Despejos por actos de vandalismo? Especialistas dizem que não cabe às autarquias aplicar penas

Constitucionalistas e administrativista lembram limites legais das autarquias. “As câmaras municipais não fazem as leis, cumprem as que estão estabelecidas”, sublinha Teresa Violante.

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Juristas contestam legitimidade de se aplicar a pena de despejo por envolvimento em actos de vandalismo ou outros crimes Daniel Rocha
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Uma ideia muito complicada de se pôr em prática, por manifestas dúvidas na legitimidade da sua aplicabilidade por parte dos municípios. Dois constitucionalistas e um administrativista, ouvidos pelo PÚBLICO, lançam muitas dúvidas sobre a possibilidade, defendida pelo presidente da Câmara de Loures, Ricardo Leão (PS), de os indivíduos condenados por actos de vandalismo na via pública ou outros crimes serem penalizados com o despejo das habitações municipais onde vivem. A posição do autarca foi manifestada na última reunião de vereação daquela autarquia, onde uma recomendação do Chega para se rever nesse sentido o regulamento municipal de habitação foi aprovada com os votos do PS e do PSD, tendo a CDU votado contra.

“À partida, não me parece que o poder local disponha do poder ou de legitimidade para estabelecer tais sanções”, diz a constitucionalista Teresa Violante, ressalvando que a sua opinião é baseada numa “análise preliminar” dos dados que são conhecidos, merecendo o assunto estudo mais aprofundado. Ainda assim, nota, o que está em causa é saber se um município tem competências para agir neste foro, o que lhe suscita as maiores dúvidas. “Estamos a falar de sanções penais para actos ilícitos e tal compete ao direito penal”, afirma, referindo-se à possibilidade de as pessoas envolvidas em actos de vandalismo serem castigadas. "Ora, isso é algo que não compete a uma autarquia", frisa.

Teresa Violante vê, por isso, e desde já, a possibilidade de tal alteração no regulamento municipal de habitação de Loures incorrer em dois tipos de vícios legais: o da falta de habilitação legal, relacionada com a iniciativa partir da câmara, e de inconstitucionalidade, ao se tentar estabelecer por esta via uma pena acessória. “Um regulamento não é uma lei. E as câmaras municipais não fazem as leis, cumprem as que estão estabelecidas”, afirma, lembrando que tal prerrogativa está reservada à Assembleia da República e ao Governo.

Violante nota que, ao se estar a privar alguém da sua habitação, “há direitos fundamentais em jogo”, nem que seja de terceiros que possam ser afectados por tal decisão. E lembra o artigo 30º da Constituição da República, onde se lê que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”.

Apreciação semelhante sobre os poderes das autarquias faz o professor de Direito Administrativo Mário Aroso Almeida, ressalvando também que “a matéria teria de ser vista em concreto”. Ainda assim, confessa a sua “estranheza” pela possibilidade colocada por Ricardo Leão e pela recomendação aprovada pela Câmara de Loures. “Não vejo que tal medida seja inconstitucional. Mas não são os municípios que fazem as leis. As autarquias têm poderes regulamentares, mas quando fazem os regulamentos tem de se ver se os mesmos têm base legal”, afirma. Por isso, diz, teria de se ver se tal regulamento estaria de acordo com a lei.

Em todo o caso, Aroso Almeida confessa que existirá sempre uma grande dificuldade no estabelecimento de “uma conexão” entre os actos praticados e as penalizações. “Teria sempre de haver uma relação entre os factos e a pena que se quer impor”, explica, antes de apontar para o que considera ser outra falha na proposta: a do princípio da proporcionalidade.

Igual objecção coloca Jorge Bacelar Gouveia. “Parece-me haver, claramente, uma desproporção e uma desconexão entre os actos praticados e tal castigo. Ligar uma coisa com a outra não faz sentido, não se percebe muito bem a que título. O direito à habitação de uma pessoa nada tem que ver com o envolvimento da mesma num acto desse género”, considera. “Não pode haver uma discriminação com base no comportamento das pessoas”, diz.

O constitucionalista alerta ainda para outra questão. “Na verdade, retirar a habitação a uma pessoa nessas circunstâncias poderia ser ainda pior para a sociedade, correndo o risco de se tornar mais perigoso”.

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