Um mundo de meritocracia de movimento

Pessoas são forjadas para servir de alicerce de validação dos princípios conservadores, em suas defesas nacionalistas, protecionistas e fronteiriças. Não serão esses os interessados pela mobilidade.

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As coisas mudaram. A vida já pode ser considerada outra. Ao menos, aos que tiverem o direito de, no futuro (cada vez mais próximo), se defenderem do desenho dessa outra concepção de liberdade. Segundo institutos de avaliação da paz, atualmente, são mais de 50 conflitos com alto grau de destruição e morte, como os na Ucrânia, no Oriente Médio, no Sudão e em Myanmar, envolvendo mais de 90 países.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o globo possui 193 países. Neles habitam 8,1 bilhões (mil milhões) de pessoas e, destas, estima-se o deslocamento de 110 milhões de refugiados políticos e ambientais. Números oficiais, pois os irregulares em 2023, pelos cálculos da União Europeia, passaram de 250 milhões. Os mesmos institutos internacionais preveem 1,2 bilhão (mil milhões) apenas de refugiados climáticos até 2050. O número assusta.

Impressiona também o crescimento dos radicais nacionalistas, as eleições de representantes extremistas a parlamentos e altos cargos executivos, com discursos de ódio, perseguição, recusa de estrangeiros, tanto em presença quanto integrados social e culturalmente. A diferença, qualquer que seja, passou a ser imposta como elemento suficiente para recusa e violência.

Quando aproximamos os ângulos políticos, econômicos e climáticos revela-se outra dimensão ao futuro, a de liberdade e sobrevivência estarem condicionadas à possibilidade e capacidade de deslocamento. Isso significa pensarmos na mobilidade extrema de povos inteiros e, até mesmo, nas internas, diante da impossibilidade de permanência em pequenos territórios. O problema é termos nos acostumado aos discursos fatalistas, como se o futuro fosse algo para um outro dia. Políticas seguem determinadas por interesses econômicos destrutivos, economias seguem como instrumentos de controles social, sociedades seguem submetidas pelo sufocamento cultural, e as culturas...

As culturas resistem e não. Transformadas pelas tecnologias, muitas de suas bases se esfacelam pela infotecnologização do imaginário que, sabemos, além de eliminar o interesse pelo singular, interfere na cognição crítica por meio da replicação sistêmica da estética. Essa formulação de um sujeito alienado e insurgente à política e a governos fortalece a construção de uma imensa massa pouco atenta às necessidades futuras, a não ser por discursos panfletários casuais que nada modificam.

Sem saber, essas pessoas são forjadas para servir de alicerce de validação dos princípios conservadores, em suas defesas nacionalistas, protecionistas e fronteiriças. Não serão esses os interessados pela mobilidade, mas os que defenderão a não mobilidade dos demais. E assim, uma nova casta há de surgir: a que possui meritocracia de movimento.

As fronteiras não impedirão o caos. Mas garantirão aos meritocratas de movimento a circulação por sua sobrevivência. Logo, todos lutaremos por pertencer a esse grupo. O ir e vir entre crises climáticas, guerras e políticas sociais e culturais extremistas. Não é um amanhã simples. Um agora, verdadeiramente.

Pode ser diferente? Talvez. O outro pode deixar de ser um intruso para ser uma oportunidade de expandir nossa percepção coletiva do real, na vulnerabilidade que chega a qualquer um, e que só pode ser acessada pela empatia e compartilhamento das fragilidades. Para tanto, precisamos reconhecer como essas questões desenvolvem silenciosamente em nós outras formas de injustiça e de desumanização, qualificando categorias de humanos a partir de suas propriedades utilitaristas ao capitalismo. E, então, recuar, e propor o compromisso com a não-violência.

A cultura, invertendo a lógica opressiva, deixa estar no fim da lista e passa ao início. Age para reconectar as relações e ultrapassar fronteiras morais e territoriais ao convidar a um relacionamento autêntico, curioso e responsável, sem perspectiva de ser pedagógica ou tolerante. Sendo otimista, ela leva o sujeito a se emancipar dos mecanismos de dominação e produzir novos imaginários políticos, em que somos diferentes e, ainda assim, capazes de juntos, humanos e não-humanos, definirmos outra lógica de habitarmos e compartilharmos o planeta.

Obviamente, isso, hoje, é uma utopia ingênua. Só que o clima se transforma de forma exponencial e logo não será mais possível ignorá-lo. As guerras se farão insustentáveis levando a economia ao caos ou, se não chegarmos à Terceira, nada impede durarem anos e décadas. As fronteiras serão muros armados com exércitos. Ou podemos sonhar. Achar maneiras. Tentar. E tentar outra vez. E quantas vezes mais forem necessárias. Melhor do que conquistar a liberdade de fugir sem pausa em um mundo de oito bilhões de imigrantes é a liberdade em podermos ficar.

Sugestões de leituras:

Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno, de Donna Haraway. n-1 edições, 2023.

A tirania do mérito: o que aconteceu ao bem comum?, de Michael Sandel. Editora Presença, 2022.

A força da não-violência, Judith Butler. Edições 70, 2021.

Résonance: Une sociologie de la relation au monde, Hartmut Rosa. La Découverte, 2021.

Like a thief in broad daylight: power in the Era of Post-Humanity, de Slavoj Žižek. Peguin Books LTD, 2019.

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