Motivos para sair de casa

Após um fim de semana fechada em casa, decidi sair. A loja de artes foi a desculpa e o refúgio onde, entre pincéis e sorrisos, encontrei um breve alívio para a rotina.

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Passei o fim-de-semana sem pôr os pés lá fora, mergulhada numa escuridão constante. Fui alternando entre quarto, cozinha e casa de banho, enquanto procurava o filme perfeito para ver – aquele coming of age que, por milagre, ainda não vi e que me fará sentir todas as coisas do mundo. Se possível, com uma personagem nos seus vintes, para sentir que é normal ir além da adolescência e continuar a sentir-me tão ou mais confusa como antes. Este acto de inconsciência em relação à finitude da vida só pode ser combatido com um “amanhã vou acordar cedo e sair de casa”. E assim foi. Preciso de desculpas para sair, mas infelizmente elas são todas consumistas: “Precisas mesmo disto! Bora?” E lá fui eu em direcção à loja de artes. Passei por uma tabacaria que vejo todos os dias pelo vidro do eléctrico, mas nunca lá tinha entrado.

O senhor da tabacaria tinha um sorriso para me dar. “Que bom”, pensei eu, tem sido raro acontecer. Estão sempre carrancudos e com ar de quem nos quer ver pelas costas. Tinha aquele sorriso sincero, talvez por eu também lhe ter sorrido. Talvez ele esteja a pensar o mesmo que eu: que somos carrancudos e só queremos virar costas uns aos outros.

Entrei na loja e ao subir as escadas em caracol, ouvi aquele som dos passarinhos a cantar, como se me estivessem a abrir as portas para um mundo encantado. Relembrei-me do meu objectivo: comprar um pincel de ponta redonda, um de ponta achatada e um muito fininho.

Escolhi os pincéis, controlando-me para não levar mais dois ou três e fui então para a seção de tintas — um mundo que não domino, pois, para mim, tinta é tinta, e a mais barata é a acrílica. Fim. E não é por eu me estar nas tintas para as tintas (risos), porque qualquer tipo de tinta me fascina; o preço é que não. Ao lado do preço, havia uma folha A4, que pedia desculpa pelos preços inflacionados, mas explicava que eles também tinham de os ajustar. Achei querido e sobretudo impensável noutras lojas físicas ou muito menos online, onde nos fazem acreditar que tudo é uma pechincha. É verdade que os artistas são mais sensíveis, e bastava olhar de relance para a funcionária, para perceber logo que trabalhar na loja era apenas o seu hobby e que a sua função principal era ser artista.

Ela perguntou-me se precisava de ajuda e eu, sem pensar, disse que não. São muitos anos de consumo, estou absolutamente imparável, e acabo por dizer que não, mesmo quando preciso de ajuda. Com três pincéis, dois lápis de pastel e duas folhas A2, fui direta à caixa.

Perguntei-lhe se as folhas custavam 2,45€. Ela foi confirmar e disse que sim. No entanto, ao digitalizar, o preço indicava 2,81€, mas ela prontamente manteve o preço inicial. Sorri e agradeci. No fundo, estava a exercer o meu direito de consumidora (nível avançado), e se for possível exercê-lo sem confusões, melhor ainda. Quando vi o total de 20,17€, fiquei surpreendida, mas desta vez pela positiva. Perguntei-lhe se tinha contabilizado tudo e ela disse que sim. Agradeceu-me, deu-me os bons dias e eu fiz o mesmo.

Ao sair da loja, fui a passos rápidos para o parque, onde tudo é melhor. Procurei o talão de compra, onde vi que o pincel de ponta achatada, o maior e mais caro, não estava registado. Rebobinei toda a nossa interação e pareceu-me claro que aquilo foi intencional. Foi por causa da minha preocupação com o preço? Do meu ar deslavado? Por achar que eu era mais nova? Ela deve achar que não tenho idade para receber um salário. Ela está, com certeza, enganada e eu não o mereço. Lembrei-me que tinha de parar de ser pessimista. Talvez ela tenha feito aquilo apenas porque quis – um simples presente a uma desconhecida que partilhava a mesma paixão.

O mundo é assim, faz-nos questionar um acto de boa vontade, um presente, deixa-nos incrédulos perante não dar nada em troca, enquanto vasculhamos os bolsos para ver se encontramos pelo menos um chocolatinho, porque achamos que um sorriso não chega.

Apanhei o eléctrico para casa, não por preguiça, mas por ter duas folhas A2 na mão e parecer ridícula. Fui para casa motivada para continuar a ter um bom dia. Com duas interacções consumistas, mas que trouxeram algum aconchego humano, mesmo que os desenhos a pastel corram mal, será um bom dia.

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