A bem-vinda hostilidade búlgara

“No geral, não há falsas simpatias como as nossas e a recompensa é uma brutal liberdade, tanta que é perigosa”, escreve o leitor Guilherme Machado.

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Entre impérios, entre um mergulho (Viena, Áustria) e um "ovni" (Buzludzha, Bulgária) Guilherme Machado
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A bem-vinda hostilidade búlgara... diria que é mais do que mero laconismo balcânico, daquele facilmente desarmado pela típica aguardente caseira que os Balcãs invariavelmente todos têm (na Bulgária, “Rakiya”). No geral, não há falsas simpatias como as nossas e a recompensa é uma brutal liberdade, tanta que é perigosa; onde o dinheiro, que é pouco, de facto vale algo e a polícia assusta tanto quanto a bandidagem.

Quem quer mal, para além de assediar, pode querer rodear uns voluntários europeus e saqueá-los, quiçá matá-los, em Karlukovo. Quem quer bem, oferece boleia: de Ochindol para o topo do lado oeste da Stara Planina e depois para Vratsa; ou para ir da estação de Shumen até aos 1300 degraus que lá carregaram este pobre tocador de harpa para um impressionante monumento à fundação da Bulgária (ainda que viesse fresco de um mergulho no mar Negro, em Varna, às 6 da manhã desse mesmo dia).

Felizmente tudo decorreu na maior das tranquilidades no acampamento na reserva arquitectónica de Staro Stefanovo, onde passei a maior parte do mês a trabalhar. Um dia, o boss até me emprestou o Volvo para escapar do ambiente demasiado europeu e parti para o auditório que qualquer pessoa que perca tempo nos instagrams de arquitectura brutalista decerto conhecerá (eu apaguei essa rede antes de ter chegado a Sofia, onde tudo começou).

No comboio. Fotos de Guilherme Machado
Varna, Mar Negro, Bulgária
Momin Prohod, Bulgária
Monumento "1300 anos da Bulgária", Shumen
Vratsa, Bulgária
Bagno Ausonia, Trieste
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No comboio. Fotos de Guilherme Machado

A ouvir os CD de gabber que o carro tinha perdidos, acelerei pela histórica Via Trayana e aterrei, com todo o devido respeito, em Shipka. Foram séculos de história búlgara numa soalheira tarde, da igreja ortodoxa do século XIX à tumba de um rei da Trácia, Seuthes III, para a agora famosa “nave espacial” de Buzludzha! “In the UK they drive on the left, in Bulgaria they drive with what’s left” e assim foi.

Passado pouco tempo, estava na hora de voltar para Portugal… de comboio, claro. Também com direito a dormida: em Ruse encontrei ambas as casas de Elias Canetti; em Bucareste usei o mesmo WC que Mircea Eliade usou na universidade; em Budapeste desmaiei por causa da arquitectura; em Viena andei por andou o Mozart, visitei o Klimt e nadei no Danúbio (“Strandbad Alte Donau”); em Trieste dormi onde dormia o Ivo Andrić, vi o Joyce alcoolizado e também nadei no Mar Adriático (“Bagno Ausonia”); em Nice assassinei uns quantos turistas abastados; e em Saragoça pasmei-me com a superioridade dos espanhóis.

Conforme avançava no itinerário, tudo ficava mais perfeito, sem sinal do tempo, tudo ficava nesse estado horrível, isto é, moderno. Não pude deixar de querer voltar onde as janelas dos comboios se podem abrir, onde ninguém se preocupa demasiado com a saúde, onde a excelente arquitectura comunista de uma qualquer antiga vila fabril quer e pode apodrecer ao lado das fortes árvores. Na Transilvânia, Budapeste, Viena (Eslovénia cortei num dia de comboio) e Trieste ainda presenciei o império austro-húngaro, mas a impressão com que fiquei foi evidentemente a de ver a modernidade já prevalecida. Certo, gostei muito dos comboios de alta velocidade, mas, admita-se, qualquer personalidade foi eliminada com o progresso na Mitteleuropa e cá, nem se fala; vivam, por isso, os Balcãs!

Guilherme Machado (texto e fotos)

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