O MNAA “despromovido”, os outros “promovidos” ou todos injustiçados?
Tratar todos por igual ou, pior ainda, reduzir a etiqueta de “museu nacional” a uma mera questão administrativa constitui o grau zero da racionalidade.
Exprimiu neste jornal o director do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), o meu colega e amigo Joaquim Caetano, a sua mágoa pela “despromoção” daquele museu, ao ponto de informar não ir agora concorrer para novo mandato directivo. Compreendo-o e solidarizo-me na parte que se refere à continuada denegação da autonomia administrativa e das condições de trabalho (equipas e orçamento) que sucessivas reformas, incluindo mais enfaticamente a do Governo anterior, vêm prometendo e não se concretizam. Todavia, na parte em que considera dever o MNAA ter tratamento singular no conjunto dos museus nacionais, divirjo respeitosamente dele, como antes o fiz em relação a antecessores seus. Já antes o PÚBLICO tinha chamado a atenção para esta “despromoção” e expressei aí, como esperaria, posição minoritária, que importaria densificar dado que as minhas declarações mais extensas foram em contexto noticioso compreensivelmente reduzidas.
Existe de facto uma “despromoção” do MNAA quando se trata o recrutamento do seu director como todos os restantes, se lhe reduz um pouco o vencimento e se extingue a figura de subdirector. Mas qualquer promoção ou despromoção, aqui como sempre, deve ser vista em termos relativos e tendo em conta a realidade.
Houve um tempo em que efectivamente o MNAA foi e teve funções únicas no país. O tempo em que por exemplo foi um "museu normal", quer dizer, que estabelecia normas e formava conservadores. Hoje não é assim: a formação é universitária, as componentes práticas são dadas em vários museus e as "normas" museológicas são estabelecidas sem qualquer referência ou intervenção do MNAA. E mesmo nesse tempo de ditadura não era verdade que o MNAA fosse o único "museu normal": a componente de arqueologia dos cursos de conservadores de museus foi sempre ministrada no Museu Etnológico do Dr. Leite de Vasconcelos, actual Museu Nacional de Arqueologia (MNA), porque Manuel Heleno, seu director de 1933 a 1964, se recusou a que fosse de outra forma.
Outra dimensão que tornaria o MNAA único seria o seu acervo e a sua actividade. Neste sentido vão-se propalando inverdades que importa corrigir. Diz-se, por exemplo, que possui o maior número de “tesouros nacionais” (o que é falso porque basta ler o Diário da República: é Arqueologia que os possui) ou que tem a maior quantidade de projectos de investigação e de circulação internacional de bens (actualmente não estou certo, mas no tempo que conheço era também falso; e basta estar atento ao que por exemplo tem sido a presença doutros museus nacionais em exposições internacionais nos últimos anos, algumas na qualidade de co-organizadores, para supor que continuará a ser falso).
É certo que o MNAA possui o acervo que, nos termos da apropriação simbólica promovida pelas elites portuguesas, mais valorizamos e melhor preenche a nossa auto-estima. Mas não nos iludamos ainda aqui: tanto na sua amplitude disciplinar e cronológica, como na sua qualidade, está longe, longíssimo, dos museus imperiais europeus, de carácter holístico, a que muitas vezes pretendem equipará-lo. Muito cedo em Portugal a opção foi a inversa do museu nacional holístico: primeiro, na monarquia liberal do século XIX, quando isto se debateu... extinguiu-se o Museu de Belas Artes e Arqueologia, criando um novo museu onde acabaram por entrar as suas colecções de arqueologia (o Museu Etnológico Português, actual Arqueologia); depois, na Primeira República, novo corte foi feito ao MNAA, com a criação do Museu Nacional de Arte Contemporânea; já na democracia de Abril, mais amputações para a criação de museus nacionais em diferentes domínios das chamadas "artes decorativas".
Ou seja, o MNAA quase nunca foi, e foi sendo cada vez menos, um museu holístico, ao jeito dos museus nacionais únicos de vários países europeus, museus que resultam nuns casos de afirmação imperial, noutros da criação de Estados de régua e esquadro, sobretudo depois da Grande Guerra de 1914-18, sendo necessário "inventar" nações onde elas não eram evidentes ou não existiam de todo. Em Portugal, ao invés, não precisamos de um “primeiro museu” para nos ensinar que somos portugueses – e isto tem feito toda a diferença desde que no século XIX se pensou a configuração dos museus nacionais, com excepção parcial talvez do Estado Novo, na sua obsessão centralista.
Tudo somado, a insistência no carácter único do MNAA surge a meus olhos como não apenas injustificada pela história, como desfasada da actualidade e, na verdade, serôdia.
Dito isto, há algo muito importante que se deve acrescentar: nem todos os chamados museus nacionais no presente são iguais e tratá-los por igual constitui um erro que a todos prejudica. Existem dois planos de análise nesta matéria: um é o das capacidades operacionais próprias de cada museu; outro é do próprio conceito de museu nacional.
Quanto a capacidades operacionais é para mim evidente que uma grande parte dos museus da actual Museus e Monumentos de Portugal E.P.E. (MMP), e quase todos os monumentos nacionais, não só não têm condições, como na realidade nem sequer ambicionam possuir o grau de autonomia de projecto que eu entendo dever existir para os museus nacionais. Precisam e sentem-se bem em possuir uma retaguarda central que assegure muitas rotinas de funcionamento, a começar pelas da contratação na função pública. Já outros, talvez poucos (Arte Antiga, Arqueologia, Azulejo, Soares dos Reis, talvez Machado de Castro e Alberto Sampaio...), querem ter graus de autonomia quase totais, que se justificam e precisam ser traduzidos em capacidades de execução de despesa. Para estes continua a ser totalmente válida a tríade estabelecida teoricamente na Lei-Quadro dos Museus Portugueses: quadro de pessoal próprio, orçamento privativo e autonomia técnica, de projecto e de execução de despesa.
Chegados aqui teremos de enfrentar o mais difícil, onde fatalmente nos vamos dividir entre nós, profissionais de museus: o que são "museus nacionais", afinal? E logo ocorre a pergunta de saber se não seria de a MMP e/ou as associações do sector promoverem um debate profundo e sério sobre este tema. Eu penso que sim.
Trata-se de tema difícil, disse, referindo-me a aspectos sociológicos. Mas também cientificamente complexo, porque a verdade é que, abandonando o conceito inicial de Museu Nacional holístico, os museus nacionais podem ser definidos por aspectos e critérios assaz diversos, tais como: a.) natureza disciplinar, recortando os tradicionais campos do saber que desde o Racionalismo fornecem colecções para museus (arte, arqueologia, etnologia, ciências naturais, etc.); b.) consagração àquilo que podemos designar por “novos campos de estudo”, transversais e decorrentes de temas a que a sociedade atribui grande relevância (teatro, traje, música…); c.) agrupamento de colecções consideradas como especialmente identitárias ou únicas (azulejo, coches); d.) relevância ímpar, nacional ou internacional, dos acervos, para o que a classificação de “tesouros nacionais” deve ser convocada; etc., etc.
Repito: trata-se de questão complexa em que provavelmente os especialistas e os “amigos” de museus irão divergir. Mas uma coisa tenho por certa: tratar todos por igual ou, pior ainda, reduzir a etiqueta de "museu nacional" a uma mera questão administrativa (os que estejam dependentes de um organismo central do Governo para os museus) constitui o grau zero da racionalidade, uma caricatura que nos deveria envergonhar como Estado-nação de longa e sedimentada história.