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Hinos oficiais: símbolos do racismo estrutural
Os hinos nacionais de Portugal e do Brasil não foram criados para enaltecer o povo, mas para ressaltar a postura de um Estado forte e, por vezes, opressor.
Os artigos escritos pela equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil.
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Os hinos oficiais foram criados para enaltecer o Estado e a Nação. Nem sempre o seu povo. Mas há canções que não foram criadas oficialmente pelos governos e que se tornaram verdadeiros hinos nacionais no Brasil e em Portugal. Durante as décadas de 1970 e 1980, ambos reconquistaram a liberdade e restabeleceram a democracia em um momento de intensa agitação política.
Qual é a ligação entre os músicos brasileiros Caetano Veloso, Elza Soares, Milton Nascimento, Chico Buarque, Gal Costa, Rita Lee, Geraldo Vandré e os portugueses Sérgio Godinho, Zeca Afonso, José Mário Branco, Adriano Correia de Oliveira e Ermelinda Duarte?
Mesmo separados pelo Atlântico, todos compuseram e cantaram a realidade dos regimes totalitários que viveram. Burlaram a censura de forma inteligente. Trouxeram à luz personagens subtraídos dos hinos e da história oficial. Criaram as canções de resistência.
Enquanto os hinos oficiais exercem a função de enaltecer valores de uma nação “heróica” e invencível, sendo, assim, um instrumento do nacionalismo, as canções de resistência são manifestações culturais de reflexão e denúncia do momento em que foram criadas. Por meio dos versos clarificam a realidade político social, retratam o povo. São canções de contestação aos governos, autoritários ou não.
A Portuguesa, como é conhecido o hino oficial de Portugal, criado em 1890, é até os dias de hoje ensinado, cantado e propagado. Canção que enobrece Portugal colonizador frente as suas colônias na África.
Dino d’Santiago, no programa Alexandria, da RTP2, em 6 de outubro, diz: “... é triste eu crescer a ouvir que sou um herói do mar, é triste eu crescer assim, a cantar um hino que, se reduzido, a letra é um hino que fez o continente que dá origem a esta tez sofrer e continuar a sofrer as consequências até hoje...”
Este é o retrato mais honesto do anacronismo dos hinos oficiais. Insiste-se em promover palavras que signifiquem o orgulho da colonização na África. Pior, manter-se como símbolo nacional. Dino d’Santiago compreendeu a complexidade de crescer a cantar e ouvir as glórias do país que colonizou, escravizou e dizimou centenas e milhares de negros.
Ao fazer uma simples e grosseira comparação entre uma estrofe do hino oficial, A Portuguesa (1890), e outra da canção Grândola Morena, de Zeca Afonso (1971), percebe-se que ambas retratam um importante fato histórico de Portugal, e é sensível a diferença entre elas. A primeira carrega todos os valores maiorais de invencibilidade e supremacia da nação ao resguardar “suas” colônias; a outra enaltece os valores humanos de igualdade e fraternidade do povo português, Veja:
A Portuguesa
“Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas!
Pela Pátria lutar!
Contra os canhões
marchar, marchar!
Grândola Morena
(...) Em cada esquina, um amigo
Em cada rosto, igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade!
Terra da fraternidade (...)
Independentemente de terem sido compostas em momentos diferentes, o que vale dizer é: por que ainda se mantém como hino oficial uma canção que engrandece a supremacia de Portugal na África colonizada?
Parece-me muito mais coerente e justo com o povo português enaltecer a sua força e sua resiliência. Sob o ritmo dos cantos alentejanos, purgar 50 anos de ditadura. Mais digno ainda é sermos lembrados por uma canção que promoveu a restituição da liberdade e da democracia em Portugal, ao invés de uma música que narra a disputa de dois países europeus, Portugal e Inglaterra, pelos territórios africanos.
No Brasil a situação não é diferente. O hino oficial do brasileiro foi criado em 1922, durante o período literário conhecido como parnasianismo, que priorizava a qualidade estética e a perfeição estrutural do texto. Pressupõe-se, assim, que, desde a sua criação, o hino nacional fora concebido para que somente pessoas letradas pudessem entendê-lo e cantá-lo. Até os dias de hoje, algumas pessoas apresentam dificuldades em cantá-lo.
Façamos o mesmo exercício e comparemos, sucintamente, uma estrofe do hino do Brasil e a canção Para não Dizer que não Falei das Flores, de Geraldo Vandré.
Hino Nacional Brasileiro
Se o penhor dessa igualdade
Conseguimos conquistar com braços fortes
Em teu seio, ó Liberdade
Desafia o nosso peito a própria morte!
Para não Dizer que não Falei das Flores
Caminhando e cantando
Seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Assim como A Portuguesa, o hino brasileiro enaltece a bravura dos homens brancos do Brasil frente a independência de Portugal. Mas, em nenhum momento, engrandece o povo negro, a mulher e os povos originários. Valoriza uma liberdade frente a Portugal.
A canção de Geraldo Vandré é um dos hinos da redemocratização do Brasil. Assim como a de Zeca Afonso é um símbolo da Revolução de 25 de abril. Ambas são canções do povo e que representam o povo.
Em 1889, D. Pedro II, do Brasil, solicitou um recenseamento para conhecer a população brasileira. Constatou-se que cerca de 58% do povo brasileiro, naquela época, já era negro. Mesmo sendo a maioria da população, nem de longe foram protagonistas deste ou de qualquer outro hino nacional do país, exceto o Hino da Negritude, oficializado em 2014. Assim sendo, quando o Hino Nacional foi criado, na versão que conhecemos hoje, a maioria da população já era negra.
Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2022, a população negra no Brasil mantinha-se como maioria: 56% do total. Ainda assim, mantém-se um hino nacional preconceituoso e excludente.
Em Portugal, a situação é ainda mais delicada. Não há registro oficial sobre a população negra. Somente em 2023, o INE (Instituto Nacional de Estatística) realizou um levantamento sobre a origem étnica dos portugueses, mas não foi um estudo que respondesse de forma quantitativa a população negra.
Como podem os dois países manterem estes hinos ainda oficiais? Classifico os dois hinos como símbolos do racismo estrutural. Os anacronismos que se perpetuam devem ser revistos. E isso se faz por meio da conscientização. Dino d’Santiago é um exemplo de cidadão que compreendeu e superou a anomalia do hino nacional português.
Sejam os monumentos às navegações, a estátua dos Bandeirantes, canções, hinos, bandeiras, obras literárias e de arte devem ser contextualizadas de acordo com o momento da história em que foram criadas e nos manter alertas para que não repitamos os erros do passado. O trabalho é longo e árduo, mas é necessário.
Como diz Dino d’Santiago, “(...) Um país que torturou, maltratou milhões, milhões de pessoas..., a grande maioria dos meus amigos, a grande maioria dos portugueses não conhecem a história. Não entendem o que foi o colonialismo. Não entendem o que foi esse período tão trágico da história da humanidade. O país criou o racismo a partir do momento que desumanizou aquelas pessoas... É importante sabermos disso para nos reconciliarmos (...)”.
Deixo aqui o acesso a uma seleção de músicas de resistência e os hinos de Portugal e do Brasil.