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Estudantes da CPLP falam em “fome e despejos” e querem ação para acesso a documentos
Alunos relatam casos de despejo e de fome por causa de atrasos na renovação de vistos e da emissão de autorizações de residência. Estudantes de Brasil, Angola e Guiné-Bissau lideram movimento.
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A demora para a emissão de autorizações de residência em Portugal vem causando grandes dificuldades para estudantes internacionais, especialmente aqueles provenientes dos países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). A burocracia e a morosidade da Agência para Integração, Migrações e Asilo (AIMA) têm gerado um quadro de incerteza e frustração para muitos cidadãos que escolheram Portugal como destino para a formação acadêmica.
Entre os mais afetados estão os estudantes angolanos, moçambicanos e guineenses, que relatam enfrentar longas esperas para obter a documentação necessária para ingressar e permanecer legalmente no país. Essas dificuldades afetam não apenas a vida acadêmica dos jovens, mas, também, a estabilidade emocional e financeira. Muitos estão passando necessidades.
O número de alunos imigrantes em Portugal aumentou 160% em cinco anos. Já são hoje 140 mil, como aponta o relatório Education at a Glance 2024, que analisa sistemas de ensino em diferentes países. Entre 2013 e 2022, a proporção de estudantes estrangeiros no total de alunos de instituições de ensino superior portuguesas passou de 4% para 12%.
Os brasileiros são a maioria dos imigrantes matriculados, seja no ensino básico, seja no secundário ou superior. No ano letivo de 2022/2023, 18.859 cidadãos oriundos do Brasil estavam matriculados no ensino superior de Portugal, informou a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC).
O impacto da crise
Segundo Ayrton Pahula, presidente da Associação de Estudantes Angolanos em Portugal (AEAP), que reúne cerca de 1500 pessoas, a crise na obtenção de autorizações de residência tem consequências graves para os estudantes. “Sem a autorização de residência, o estudante não consegue se candidatar a alojamentos universitários, não tem direito a bolsas de estudo e fica sem acesso a diversos auxílios sociais. Muitos acabam vivendo em condições de extrema precariedade, sem acesso à moradia, sendo despejados, e sem alimentação adequada, alguns sem ter o que comer”, relata.
A situação é ainda mais crítica para aqueles que chegam em Portugal com atraso, por conta demora na emissão do visto — Angola não tem acordo com Portugal e, por isso, residentes daquele país só podem entrar aqui com visto. Muitos alunos enfrentam dificuldades na emissão do visto pelas embaixadas lusas em seus países de origem. “Temos casos de colegas que perderam o semestre inteiro porque não conseguiram o visto a tempo”, destaca Pahula, acrescentando que a espera pela autorização de residência continua, mesmo após a chegada ao país.
Diante desse quadro, Pahula decidiu liderar um movimento que visa a criação de um coletivo de estudantes da CPLP para pressionar as autoridades portuguesas e os governos dos países de origem a adotarem medidas mais eficazes para resolver o problema. A ideia é que uma ação coordenada e conjunta tenha mais força para negociar com as instituições responsáveis por agilizar o processo de emissão das autorizações de residência.
“Estudantes de diferentes países da CPLP enfrentam as mesmas dificuldades. Por que não nos unirmos para buscar soluções em bloco?”, indaga Pahula. Ele acredita que a união das associações estudantis dos países lusófonos pode ser um passo crucial para garantir que as vozes dos estudantes sejam ouvidas. “A CPLP tem um peso político que pode ser utilizado para criar um canal de diálogo mais eficiente com as autoridades portuguesas. Queremos garantir que nossos direitos sejam respeitados e que possamos estudar em Portugal sem essas barreiras burocráticas”, enfatiza.
Apoio à proposta
A proposta de Pahula já começou a ganhar forma. Ele tem mantido diálogos com representantes estudantis de outros países da CPLP, como Moçambique e Guiné-Bissau, e planeja organizar um encontro oficial no próximo semestre para alinhar as pautas e definir uma agenda comum. “Só com união conseguiremos ter nossas vozes ouvidas”, assinala Pahula.
Joice Bernardo, presidente do Núcleo de Estudo Luso-Brasileiro da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, apoia a ideia e vai se reunir com Pahula. Para ela, a união dos estudantes pode ser um caminho para provocar uma mudança real. E a jovem afirma que já conversou com representantes de outras nacionalidades e está disposta a participar ativamente nas discussões. “A criação do coletivo será fundamental para pressionar o pleno da CPLP a tomar medidas mais céleres e eficazes em relação às questões migratórias dos estudantes”, diz.
Para Joice, não é só uma questão de visto, pois a autorização de residência se tornou uma fonte de grande desgaste emocional e financeiro para os alunos. Ela cita que, apesar de medidas que teoricamente deveriam facilitar o processo de obtenção do visto, como a não-exigência de comprovação de recursos financeiros, as falhas operacionais em Portugal, exacerbadas pelo excesso de demanda e pela terceirização de partes do processo, complicam ainda mais a situação dos estudantes.
Mussa So, 24 anos, que nasceu na Guiné e é o presidente do Núcleo de Estudantes Africanos da Faculdade de Direito de Lisboa, também apoia a ideia. "Imagina, nossos estudantes perdem praticamente o primeiro ano porque só conseguem chegar aqui em janeiro, quando deveriam estar no país desde setembro", diz.
No entender dele, a burocracia nas embaixadas e a lentidão no processo de obtenção de vistos são obstáculos que afetam o calendário acadêmico e a estabilidade emocional e financeira dos estudantes. “Muitos precisam pagar propinas (taxas universitárias) integralmente, mesmo sem ter frequentado as aulas desde o início”, revela.
Lista de dificuldades
Os relatos de estudantes afetados pela crise na emissão de autorizações de residência são numerosos. A angolana Kezita Michingi, 45 anos, que se mudou para Portugal para cursar um doutorado em sociologia, é um exemplo. Ela esperava que o processo de obtenção do visto fosse rápido, mas enfrentou uma espera de meses, o que a fez perder o primeiro semestre de aulas. “Perdi o primeiro semestre e agora terei que repetir o ano. Isso significa que vou atrasar minha formatura e terei que pagar mais um semestre de estudos”.
Michingi, que está matriculada no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), conta que os problemas que enfrenta para a renovação de sua autorização de residência provocou instabilidade para ela e seus três filhos. “Embora tenha conseguido entrar em Portugal, a documentação dos meus filhos sofreu atrasos, dificultando o acesso a serviços básicos como saúde e educação”, explica. Ela vive com medo de viajar para Angola, pois acredita que pode ser impedida de entrar em Portugal no retorno.
Outro caso emblemático é o de Thainara Nascimento, brasileira de 33 anos que se mudou para Lisboa para cursar o mestrado em direito comercial. Ela iniciou o processo de solicitação de visto em 2020, durante a pandemia, e relata que, mesmo com todos os documentos em mãos, enfrentou uma longa espera. “Tive que esperar meses para receber meu visto”, frisa.
Thainara destaca que as dificuldades enfrentadas pelos estudantes africanos são ainda mais graves. Ela menciona o caso de um colega angolano que só conseguiu visto em dezembro, três meses após o início das aulas, e foi rejeitado por uma professora. “Ele não pôde assistir os três primeiros meses de aulas e, quando finalmente conseguiu chegar a Portugal, a professora não aceitou mais a participação dele no curso”, relata.
Pressão na CPLP
Joyce Bernardo, líder de estudantes brasileiros na Universidade de Lisboa, destaca o caso de uma aluna que chegou a Portugal acompanhada do marido, ambos com a expectativa de construir uma nova vida. No entanto, enquanto a estudante conseguiu a autorização de residência, o marido dela não teve a mesma sorte.
A falta do documento impediu que ele pudesse trabalhar, o que rapidamente consumiu as economias do casal, resultando na deterioração do relacionamento e, eventualmente, na separação. "O casal vendeu bens no Brasil para se mudar para Portugal e acabou vendo tudo se desfazer devido à ineficiência do processo", lamenta Joyce
O embaixador Juliano Féres Nascimento, representante do Brasil junto à CPLP, reconhece a gravidade da situação. Para ele, a solução para os problemas enfrentados pelos estudantes da CPLP exige uma ação conjunta. “Não basta uma ação isolada dos estudantes brasileiros. É necessária uma mobilização dos alunos de diferentes países da CPLP, para que possamos nos debruçar sobre o tema e buscar soluções concretas”, diz.
O embaixador se mostra disponível para se reunir com os estudantes e discutir o tema, além de levar o assunto ao plenário da CPLP, caso haja uma mobilização significativa. Ele destaca que o Brasil está comprometido em apoiar seus cidadãos no exterior, mas que uma solução ampla só será possível com a participação de todos os países membros da CPLP.