Quando há assuntos mais prementes do que colocar em causa a Educação para a Cidadania

Os temas abordados no currículo da disciplina de Educação para a Cidadania não entram nas escolas por via curricular: dão entrada pela porta da vida.

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Pormenor de um espaço na Escola Secundária Camões, em Lisboa, recentemente recuperada Daniel Rocha
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Disse a mim própria que não ia escrever sobre as posições políticas que se esgrimem em torno da disciplina de Educação para a Cidadania. E não tencionava fazê-lo precisamente por corresponderem a questões ideológicas, às quais as escolas são alheias e sobre as quais não foram tidas nem achadas. Mas, depois, debati-me com o já habitual incómodo que sinto quando a política utiliza as questões educativas para impor a sua agenda ideológica, que se sobrepõe à realidade que se vive nas escolas.

Porque, na verdade, a polémica sobre a disciplina de Educação para a Cidadania não partiu das escolas, nem parece encontrar grande eco nas mesmas. Por razões muito simples. Primeiro, porque as escolas estão demasiado ocupadas a tentar resolver problemas muito mais prementes, como a falta de professores, a integração de alunos estrangeiros que não falam Português, as dificuldades de aprendizagem, as questões da indisciplina e os apoios pedagógicos… ou a falta deles, só para falar em alguns.

Segundo, porque os temas abordados no currículo da disciplina de Educação para a Cidadania não entram nas escolas por via curricular: dão entrada pela porta da vida. Quer se queira ou não, quer se goste ou não, todos os dias as escolas são confrontadas com situações que dizem respeito aos direitos humanos, à interculturalidade, à igualdade de género, aos problemas ambientais, à promoção da saúde e, sim, também às questões da sexualidade.

É preciso que fique claro que não é uma escolha das escolas se estes temas entram ou não para dentro das suas portas. A única questão que pode estar em cima da mesa é o que fazer com estes temas: se os professores devem ignorá-los e deixar os alunos sozinhos a braços com estas problemáticas; ou se devem proporcionar-lhes um espaço no qual possam ter um interlocutor para abordar questões que, naturalmente, os preocupam.

No entanto, há algo que gostaria de trazer para o campo desta discussão. Se, na minha opinião, a escola não se deve demitir das suas responsabilidades na formação dos futuros cidadãos, também não deve ficar isolada ou assoberbada nesta demanda. Porque se há quem discuta se as questões da cidadania devem ser abordadas nas escolas, também há quem não se exima de colocar em cima destas todos os problemas do mundo.

E com isto não pretendo dizer que os problemas identificados não sejam importantes ou não necessitem de soluções. O cerne da questão é perceber se a escola é um saco sem fundo onde pode caber tudo, de acordo com uma lógica aditiva interminável. De acordo com esta lógica, de cada vez que se identifica um problema na sociedade, procura acrescentar-se um conteúdo curricular ou desenvolver um projeto escolar.

Se, nomeadamente, existe maior agressividade entre os jovens, é necessário reforçar a gestão de conflitos; se existe maior propensão para a obesidade infantil, deve insistir-se na educação alimentar; se existe dificuldade na gestão do orçamento, importa sensibilizar para a educação financeira; se existe falta de espírito de iniciativa, o caminho passa pela educação para o empreendedorismo… Poderia continuar esta listagem indefinidamente, nomeando sempre novos problemas e propondo sempre novas soluções para os novos problemas.

É neste sentido que importa refletir sobre os papéis a desempenhar pelos intervenientes nesta matéria. É que a Educação para a Cidadania não é apenas atributo das escolas. Cabe a todos e às famílias especialmente. Os pais têm um papel de relevo a desempenhar, já que são, por excelência, os maiores educadores dos seus filhos. A educação que vem de casa constrói-se não só com o diálogo entre gerações, mas também e sobretudo por via do exemplo, através das opções e atitudes cívicas que os filhos observam de forma continuada nos seus pais.

E também cabe à sociedade em geral, e aos agentes políticos em particular, apoiar os pais na sua tarefa educativa, defendendo os direitos relacionados com o exercício da parentalidade, alargando a rede de oferta de creches e educação pré-escolar, garantindo a qualidade da escola pública, apoiando as escolas na integração dos alunos que não falam Português, proporcionando locais seguros e ofertas apelativas para as interrupções letivas, bem como alargando a rede de centros de diagnóstico e o apoio para problemáticas relacionadas com a aprendizagem ou o desenvolvimento.

Perante o elencar destas problemáticas com as quais as escolas se confrontam diariamente, temos de nos questionar sobre a pertinência e a urgência de sobrepor as questões ideológicas às pedagógicas. A grande verdade é que a prioridade das escolas, a braços com questões bem mais prementes, não residirá certamente nas alterações curriculares que, por serem constantes, introduzem instabilidade no sistema. Para que possam focar-se nas soluções para os problemas que efetivamente têm para resolver, as escolas necessitam de tréguas curriculares. Neste sentido, um pacto educativo, que conferisse estabilidade ao sistema educativo, seria certamente bem recebido.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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