Ciúmes e foie gras

Os ciúmes parecem andar sempre a rondar entre o mito e a realidade. Entre o que é nosso e que é do outro. O mito de que somos insubstituíveis. A realidade dos nossos desejos e paixões.

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"É preciso ter um açougue de confiança!" Rui Gaudêncio/Arquivo
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É uma mulher extremamente sofisticada, elegante e discreta. Conheço-a desde sempre e nunca a vi despenteada, nem desmaquilhada, nem mal vestida. Fala com uma voz contida, com gestos medidos, passa a língua nos dentes para fiscalizar qualquer resto de comida que possa ter ficado colada no esmalte, com um glamour decoroso. Tenho dificuldades em imaginá-la com uma nódoa na camisola. Está sentada ao meu lado na mesa do jantar. Espeta um naco de bife do acém com o garfo, enquanto luta para separar um pedaço de nervo:

— É por estas e por outras que prefiro o filet mignon. Nunca tem nervos. Lá para casa compro sempre no mesmo talho. Sou fiel ao sítio onde compro a carne. É preciso ter um açougue de confiança!

O jantar prossegue e a conversa despeja-se suave como o vinho tinto nos copos. Há foie gras na mesa… Eu dispenso. Ela prossegue a história que estava a contar. Com o rosto ligeiramente enrubescido pelo embaraço, narra-me o momento em que desferiu o golpe de uma faca de cozinha na pintura brilhante do carro novinho em folha do marido:

— Não me contive. Assim que vi o carro dele parado em frente ao edifício de escritórios onde trabalhava, dei por mim a atravessar a estrada, e a tirar a faca da mala… Em pleno dia, desenhei um risco, do capô ao porta-bagagens… —, narra-me com os olhos abrilhantados pela emoção, antes de triturar o pedaço de carne que tem no garfo. No final, não satisfeita, tinha ainda furado os dois pneus traseiros, daquele que era o objeto de profunda estima e vaidade do dito cônjuge.

— Mas queres saber o pior de tudo? Não era um carro qualquer… Era um Volvo!

Rio-me com a particularidade do remate. Para mim, carros e cortes de carne são mais ou menos semelhantes. Não sei se distingo propriamente um rosbife de um filet mignon. Desde que ande… Desde que não seja sola de sapato.

— Mas… Costumavas andar com uma faca? Na mala? —, ocorreu-me perguntar, perante a inesperada confissão de vandalismo sentimental.

Ela não andava com uma faca. Tinha acabado de sair do Ikea porque tinha ido comprar louça nova para repor na cozinha, agora esvaziada, quando o marido saíra de casa para perseguir um romance com outra mulher — cuja a idade era, mordazmente, nada mais nada menos, do que a da sua filha. O desditoso tinha-lhe levado (além do orgulho e do amor próprio) todo o conjunto de talheres e louças da cozinha do casal. Um último golpe de mau gosto — já que tinha despedaçado o matrimónio envolvendo-se com uma pessoa que nunca sequer fora à Expo 98, porque não era nascida (no mesmo ano em que Bill Clinton fez a sua declaração sobre a Sala Oval) e que provavelmente pensa que os Nirvana são influencers budistas —, podia ao menos ter deixado a cutelaria doméstica em paz.

Pior do que a dor de ter de alguma forma comprometidas as memórias de um passado comum, ela agoniava-se com a imagem do futuro do seu já calvo ex-amante com a extremamente jovem recém-desposada: um futuro no qual ela não se encaixava, com a sua experiência maturada, cujo efeito do tempo ela não podia reverter. O resultado? Um carro esquartejado. Nunca se deve subestimar o poder arrasador de uma mulher despeitada. Nem de uma faca sueca.

E ainda agora, sentada à mesa, ela não sabia como livrar-se da sensação de azia que esse futuro, sem ela, lhe provocava no estômago. Para uma crise gástrica de ciúmes não há pastilha de Kompensan que alivie. Já um risco no Volvo… Volvia e revolvia a memória desse momento de catarse enquanto tentava separar desesperadamente o pedaço de nervo do bife. O nervo que parecia não sair…

Nesse mesmo jantar, contava uma outra amiga, que tinha sido dominada pelos ciúmes, não diante do futuro, mas de um passado que teimava em colar-se nas paredes. Mais propriamente nas paredes do corredor do apartamento a dois, onde o seu atual namorado exibia orgulhosa e solenemente as telas pintadas por uma ex-namorada, artista francesa (e cuja assinatura colhia por sinal uns bons créditos no mercado dos marchands d’art). Acalentada por uma discussão na qual não garantia ter sido necessariamente portadora da razão, ela, a namorada do presente, ter-se-ia levantado a meio da noite para retalhar com a faca do pão, as ditas obras de arte e degolar uns quantos quadros abstratos.

Resultado: uma carnificina artística.

Facas e ciúmes não são definitivamente uma boa combinação.

Enquanto as escuto, tão assustada quanto seduzida pelas proezas da insensatez e da fúria, não consigo evitar sentir inveja pelo arrojo delas. Sempre me debati com uma certa falta de atrevimento para a transgressão. Sempre transgredi pouco — ensinada a arrumar sensatamente as emoções deselegantes, a esconder o que tomava por sentimentos menos nobres, numa espécie de divisão bem fechada, como aquela dispensa ou armário da casa onde despejamos a tralha, e escondemos a roupa por lavar, os pares de meias soltos, as bugigangas pirosas de que não nos queremos desfazer, para não assustar os convidados.

Quando alguém me visita, gosto de ter a casa arrumada. Mas uma casa-museu, impecavelmente limpa e ordenada, pode ser sinistra! E aterradoramente fria… Como esperar que a carne de um animal não tenha uma pontinha de gordura, de nervos?

Ocorreu-me o mito da Medeia, da tragédia de Eurípedes. Na peça, Medeia para ajudar o argonauta Jasão, por quem se apaixona, atraiçoa o pai e mata o irmão. Mas chegados a Corinto, para viverem uma vida comum, Jasão apaixona-se pela filha do rei, Glauce, e abandona Medeia. Pela afronta, Medeia mata não só Glauce, como os seus filhos, numa vingança que pretende causar ainda maior dor a Jasão. A peça, entre o mito e a realidade humana, envolve acontecimentos mágicos, como um campo lavrado com dentes de um dragão do qual nasceu um exército de perigosos guerreiros.

Recordo-me de um namorado, que tive, que se deixava tomar por ciúmes acerca de coisas tão delirantes e imaginativas como dentes de dragão dos quais cresciam exércitos violentos. Uma certa vez ,julgava ter visto juras de amor numa troca de olhares, entre mim e um Jasão que estava atrás do balcão de uma loja de souvenirs do aeroporto, no qual nunca cheguei sequer a reparar de tão distraída que estava a olhar, não para o seu peito viril nem para as massas musculares do seu lombo, mas para os porta-chaves em miniatura atrás dele. Ao empregado, nunca cheguei a vê-lo para lá da montra. Já o meu namorado, encontrara espelhada no reflexo do vidro, uma sórdida história que crescia dentro da sua cabeça.

Resultado: um último dia de férias em belicosa contenda, e um dia no aeroporto desgraçado pelo fuso horário, e pelo fuso entre a expectativa e a imaginação.

Os ciúmes parecem andar sempre a rondar entre o mito e a realidade. Entre o que é nosso e que é do outro. O mito de que somos insubstituíveis. A realidade dos nossos desejos e paixões.

Talvez por isso me pareçam tão difíceis de expressar, mesmo quando me deparo diante de um bom titeriteiro que sabe manobrar a paixão e a conveniência com destreza, a fazer de mim marioneta num teatrinho em miniatura, para me atiçar os nervos; a provocar ciúmes, só para garantir que é detentor do desejo do meu desejo. Quando provocam os meus instintos mais trágicos, tenho o mau hábito de me forçar a permanecer estóica, imperturbável, de tentar selar os ciúmes em lume brando. Resulta quase invariavelmente em úlceras. O estoicismo é muito bom para os heróis, muito mau para o estômago de uma simples mortal.

As representações trágicas na Grécia Antiga tinham lugar junto ao templo do deus Baco, a sul da Acrópole. As grandes representações trágicas eram feitas para toda a população, mesmo para aqueles que normalmente não participavam da vida política da cidade, como as mulheres e os escravos... As histórias narradas em cena tinham a função de trazer à luz os conflitos e ambivalências da experiência humana, e provocar no espectador a vivência do pathos — que não se refere a nada relacionado com “pato”, nem com "patê" —, mas antes ao sofrimento, ao que nos afeta. A tragédia era uma forma de procurar digerir a trajetória complexa da vida, para que coletivamente se refletisse sobre a luta e o sofrimento da condição mortal dos humanos.

As questões e as paixões que nos movem parecem não ter mudado muito desde a época de Eurípides. Antes colocássemos as tragédias a céu aberto, para expormos os nossos medos mais negros, os nossos nervos, os nossos ciúmes, em vez de os guardarmos em caixinhas muito sofisticadas, por vezes de última geração, a fingir que não estão lá, que não vão fazer curto-circuito, que não vão riscar os nossos dias, esvaziar as nossas possibilidades de dar mais uma volta no futuro. Afinal todos temos um tanto de Medeia, e já agora, de Jasão.

Os sentimentos que nos afetam, mesmo aqueles que consideramos menos nobres, trazem-nos notícias da nossa humanidade. Julgo que se os ignorarmos, corremos o risco de nos tornarmos vítimas de uma espécie de foie gras sentimental, empanturrados com o que vamos escondendo dentro de nós.

De qualquer forma, terminado o jantar, não me livrei deste conselho: o de escolher bem o açougue. Se é para me cortar a carne em sangue, que seja com alguém de confiança.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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