Na Covela, há fungos que são amigos da videira e que são tratados como tal

A Quinta de Covela é o primeiro produtor de vinho do mundo a obter a certificação da Regenerative Viticulture Alliance, o reconhecimento de uma viticultura holística, aprimorada nos últimos anos.

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Na Covela, usam um extracto de composto com folhas, restos de manta morta, películas e grainhas de uvas para activar a vida microbiana do solo José Sérgio
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"Num ecossistema saudável, as culturas dão produções com mais qualidade. Plantas bem nutridas dão frutos com mais aroma, mais sabor, mais textura." Sejam videiras, sejam outras plantas. E para as nutrir, defende a agricultura regenerativa, é preciso tratar bem a comunidade de microorganismos que as rodeia, nomeadamente os fungos existentes no solo que podem fornecer às plantas "nutrientes básicos, mas também substâncias bio-estimulantes" que farão com que elas sejam mais saudáveis e resilientes sem necessidade de se utilizarem fitofármacos.

A Quinta de Covela, situada em Baião, na fronteira da região dos Vinhos Verdes com o Douro, já num clima mediterrânico e em solos graníticos, é o primeiro produtor de vinho do mundo a obter a certificação da Regenerative Viticulture Alliance (RVA). A boa nova chegou à propriedade de 16 hectares de vinha (e conhecia pelos seus vinhos de Avesso, casta que já representa mais de 60% do encepamento) na Primavera, premiando um trabalho que começou bem lá atrás, no anterior projecto vitivinícola, primeiro com a agricultura biológica e depois com a biodinâmica.

Começa por explicar Miguel Soares, responsável de viticultura na Covela, que "todo o sistema começa com uma fonte de energia, a energia solar". Na fotossíntese, as plantas utilizam luz solar, dióxido de carbono (CO2) disponível na atmosfera e água para produzir açúcares e hidratos de carbono, transformando a energia solar em energia química. A planta utiliza o carbono que é, assim, fixado no seu metabolismo, mas "parte daquilo que ela fotossintetiza é libertado pelas raízes sob a forma de exsudatos radiculares, para atrair microorganismos, e muito desse carbono é assim libertado para o solo", explica o viticólogo e um dos técnicos que mais sabe de agricultura regenerativa em Portugal. "Eu próprio, que estudei agronomia, e conhecia o ciclo do carbono e de criação de matéria orgânica no solo, não tinha, há uns anos, noção disto."

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O enólogo da Quinta de Covela, Rui Cunha (à esquerda), e o responsável pela viticultura do projecto, Miguel Soares (à direita) José Sérgio

Para fazer circular esse carbono, mas também nutrientes, há que manter a vinha (neste caso) com cobertos vegetais com raízes activas — importantes também para estruturar o solo e permitir que este retenha mais água. "Na prática, num hectare de vinha [sem coberto vegetal], só um terço desse hectare é que tem plantas" e, desta forma, está a maximizar-se a fotossíntese no sistema agrícola. Para isso, a agricultura regenerativa, explana Miguel Soares, tenta "mimetizar e adoptar" os processos de regeneração natural que os ecossistemas têm. Falávamos em Setembro numa altura em que havia vários incêndios activos no país e em Baião também. Olhando a paisagem, Miguel exemplificou assim: "Aquela floresta que está ali a arder não vai ficar reduzida a cinzas eternamente. Há um processo de regeneração natural. Neste exemplo concreto, existem plantas que vão aparecer primeiro, são as chamadas plantas pioneiras. Então, [na vinha] eu pego no maior número de espécies de plantas pioneiras que conseguir arranjar e faço a instalação do coberto."

Para começar, o que essa biodiversidade faz é que "diferentes arquitecturas de folhagem" se distribuam "de forma diferente no solo", optimizando a captação de radiação solar. Depois, como "cada espécie tem o próprio microbioma", os serviços ecológicos de umas e de outras espécies "complementam-se".

E a seguir? Por alturas de Maio, depois da floração, com a ajuda de uma alfaia agrícola que já estava na Covela quando os actuais donos da quinta, Tony Smith e Marcelo Lima, ali chegaram, uma espécie de "rolo-faca", "tombam-se" essas plantas. Não se cortam, tombam-se, calcam-se. "Num processo de sobrevivência, elas tentam acelerar o ciclo e vão amadurecer a semente. Como são anuais, depois de formarem a semente secam. Garanto sementes para o ano a seguir e, ao mesmo tempo, tenho um escudo protector seco que já não está a competir pela água no Verão. Pelo contrário, está a proteger [a videira] da radiação solar, de temperaturas [mais elevadas] e da radiação ultravioleta — que oxida a matéria orgânica e mata os microorganismos —, e está a reter humidade." "Sim, é um mulching [uma cobertura morta] natural." Que tem ainda outra vantagem: impede a emergência de infestantes de Verão, que, essas sim, competem com videira pela água.

Reter carbono e aumentar a matéria orgânica

Porque não triturar as plantas do coberto vegetal? "Temos plantas muito tenrinhas, com açúcares muito facilmente digeríveis. Estaríamos a dar primazia aos microrganismos que se multiplicam muito depressa, porque têm nutrientes facilmente assimiláveis, ou seja, às bactérias. Só que as bactérias são pouco eficientes na fixação de carbono, porque elas alimentam-se, multiplicam-se e libertam muito [carbono] por respiração, tal como nós. Muito do carbono é devolvido [à atmosfera] e pouca biomassa fica retida no solo", explica. Aí está a razão pela qual cada vez ouvimos falar, em viticultura, de rizosfera — a parte do solo junto às raízes de uma planta — e de micélio — a parte vegetativa dos fungos. São estes os microorganismos mais eficientes e aqueles que a agricultura regenerativa procura atrair.

Na Covela, parece estar a funcionar: há dois anos fizeram um estudo de sequenciação genética do solo e "a avaliação foi boa". "Desde então temos vindo a fazer uma sequenciação mais simples, por microscopia, e a proporção de fungos para bactérias está a melhorar."

Calcando as plantas, resta "mais celulose, muito mais lenhina, portanto, açúcares de mais difícil digestão". Para as bactérias, não para os fungos, que "têm um arsenal enzimático mais potente". Ainda assim, para digerir o dióxido de carbono (CO2) os fungos precisam de minerais, como o azoto, o fósforo e o potássio, disponíveis em profundidade no solo. Isso obriga o micélio a crescer para "bombear" esses nutrientes para a superfície. Também estará a bombear carbono, que digerirá e incorporará.

"Se formos a ver, numa floresta, que é um ecossistema ecologicamente mais evoluído, temos uma proporção de fungos muito maior do que de bactérias", reforça o técnico que na Covela começou "a trabalhar a sério com plantas pioneiras em 2018". Não é à toa que em agricultura se começou a falar de agrofloresta. Miguel, sublinha, teve "a sorte" de encontrar uma quinta que já tinha uma galeria ripícola cuidada, mata atlântica e mata mediterrânica, cinco hectares de árvores de fruto.

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Explica Miguel Soares que quando ouvimos dizer que determinado solo tem 1% de matéria orgânica, "no primeiro palmo", isso "quer dizer que são capturadas dez toneladas de carbono da atmosfera". A Covela está "a retirar carbono da atmosfera e a melhorar a [sua] produção." A certificação agora obtida pressupõe a medição de vários parâmetros e da sua evolução num determinado período de tempo. E as medições de matéria orgânica revelam "ganhos espantosos", congratula-se o viticólogo. "Para terem uma ideia, eu tenho análises de solo com 1,2%, 1,3% e 1,5% [de matéria orgânica] em 2018 e em 2023 tenho algumas com 3,2%."

Cada exploração é uma exploração

Para além da manutenção de cobertos vegetais com raízes activas pelo maior período de tempo possível e da promoção da biodiversidade, são mantras da agricultura regenerativa a minimização do impacto no ecossistema e a contextualização da exploração agrícola. Nem tudo o que funciona num dado lugar funcionará noutro. Na Covela, exemplifica Miguel Soares, não faz sentido ter ovelhas na vinha, em parte por causa da orografia do terreno e porque por ali não há pastores.

Há outras certificações em agricultura regenerativa, mas o selo da RVA, atribuído por uma entidade espanhola, bebe da mesma inspiração que Regenerative Organic Certification (ROC), do Instituto Rodale, ligado a Robert Rodale, pioneiro da agricultura biológica nos EUA. Obriga o produtor ao modo de produção biológica, tornando o processo mais exigente, mas afunilando-o também. Como reconhecem Miguel Soares e Rui Cunha, enólogo da Covela desde 1991, o mais importante é olhar para a vinha "de forma holística".

Um produtor pode "ter um solo completamente nu e ser certificado como biológico ou biodinâmico", nota Miguel, que vê no uso de cobre contra o míldio o "calcanhar de Aquiles" do biológico. "Tentamos levar ao mínimo a sua utilização e fazê-lo com mais eficiência." Para potenciar as defesas das videiras, o técnico e a sua equipa fazem um extracto fermentado com plantas como a urtiga, o salgueiro e a cavalinha, usando bactérias lácticas (provenientes de kefir) como agente fermentador, para aplicar na folha da videira.

Não fazem mobilizações de solo e este é, de resto, um requisito da certificação em regenerativa. Para muitos seria o mais complicado de cumprir, mas na quinta de Baião arranjaram uma alfaia que faz um corte vertical no solo e que ajuda a resolver a questão da compactação do solo. Esse descompactador é usado ano sim, ano não e, como foi adaptado, permite inocular em simultâneo o solo com um "activador microbiológico", um extracto de composto que usa "folhas e restos de manta morta colhidos na floresta da Covela", assim como "películas e grainhas de uvas" (o material da poda, outro subproduto da indústria do vinho, também fica no solo). Leva um ano a ficar pronto e é uma 'ajuda' no Outono e na Primavera — quando não é usada aquela alfaia, a aplicação é feita através da água da rega.

"Mesmo com estas práticas, pode haver desequilíbrios", nota Miguel, daí que o solo seja analisado nos momentos mais críticos do ciclo vegetativo da videira. Ao olhar para a exploração agrícola como um todo, a Covela também está a acrescentar "mais um factor ao conceito de terroir", acredita Rui Cunha, que garante sentir a diferença, positiva, nos mostos e anunciou para breve o lançamento de dois vinhos de parcela que espelharão bem os resultados da agricultura regenerativa.

Nome Covela Avesso Reserva Branco 2022

Produtor Lima & Smith

Castas Avesso

Região Vinhos Verdes

Grau alcoólico 12,9%

Preço (euros) entre 15 e 18 (PVP recomendado)

Pontuação 92

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova Cítrico, aromaticamente intenso, com um toque mineral. E esse nariz belo também decorre do trabalho de sustentabilidade que o produtor e a dupla Rui Cunha (enologia) e Miguel Soares (viticultura, pasta partilhada com Miguel Ribeiro) têm vindo a fazer e que, entretanto, valeu à Covela a certificação da Regenerative Viticulture Alliance. É o primeiro produtor de vinho do mundo a obter este selo. Belíssima acidez num vinho delicado e cuja secura que faz dele uma excelente companhia para a mesa. Notável exemplar de uma casta que é avessa a viagens e que se dá bem sobretudo ali, na sub-região de Baião. Na Covela, o Avesso representa “60% a 65%” dos 16 hectares de vinha da quinta. Este vinho foi feito com a ajuda de leveduras indígenas, as da vinha, e foi à barrica (não se nota, e, já agora, isso é bom

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