Público Brasil Histórias e notícias para a comunidade brasileira que vive ou quer viver em Portugal.
A língua portuguesa e o preconceito
Fabricar uma língua para superar preconceitos estruturais corresponde a tentar que o esperanto supere o inglês como língua internacional.
Os artigos da equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil.
Acesso gratuito: descarregue a aplicação PÚBLICO Brasil em Android ou iOS.
Minha mãe veio para o Brasil contava ela com 16 anos. Os pais a trouxeram. Moça inteligente, queria estudar. Meu avô não deixou. Uma mulher que estuda? Que bobagem! Para quê? Essa não arruma marido! Assim, para proteger o futuro de sua filha, condenou-a. Há amores que sufocam a liberdade. Casou-se, teve filhos, realizou-se como pôde no casamento. Repetia que "atrás de todo grande homem, há uma grande mulher". Anos depois, minha mãe assistiu às suas sobrinhas irem para a faculdade, mas sempre teve dificuldade em falar nesse assunto: o direito a ser mulher em uma sociedade machista que a coloca atrás do marido. E, talvez para não sofrer se pensasse muito no assunto, em seus comentários, naturalizava que essa suposta superioridade masculina: todos sabem que é assim, dizia.
Uma língua é o que fazemos com ela. Ao falar, as coletividades reproduzem os seus valores e a sua visão de mundo. Reproduzindo o cotidiano social e ético onde ela se exerce, a língua pode se carregar de preconceitos e visões estereotipadas. A língua portuguesa é preconceituosa na medida em que o são os seus falantes.
Também é verdade que as palavras reforçam comportamentos. Elas têm até o poder de mudá-los. A língua deveria ser a escolha não violenta para caminharmos como civilização. A metonímia se justifica: uma língua reflete o povo que dela faz uso, enquanto, ao mesmo tempo, ela lhe dá forma. Essa relação, porém, é muito mais complexa do que tem aparecido nas mídias sociais.
Assisto, um tanto preocupado, a esse clima fla-flu que se tornou a defesa de uma língua neutra. Negar que a língua portuguesa é tendenciosa nos seus valores é apenas tapar o sol com a peneira. Ela o é porque a sociedade faz uso dela para construir e manter a realidade dos seus preconceitos. E são muitos.
No entanto, impor uma língua de laboratório que se pretenda neutra é, de partida, buscar o irrealizável. Fabricar uma língua para superar preconceitos estruturais corresponde a tentar que o esperanto supere o inglês como língua internacional. Não dá. Nunca considerei justa a vantagem que os nativos da língua inglesa têm sobre os demais, mas é o que de fato acontece neste mundo tão competitivo de meu Deus.
Falando nele, a própria ideia de um Deus Pai, patriarca, autoritário, revela um modo peculiar de pensar o ser humano e as suas muitas inter-relações. Mas há uma história que acompanha as palavras e ainda que essa história não justifique erros, ao menos nos ajuda a contextualizá-los e a termos uma atitude, digamos, pedagógica para com o tão importante processo de construir uma língua portuguesa necessariamente mais justa, menos arraigada a um passado colonizador e carregado de preconceitos.
Enquanto o meu curso de Letras corria, mais entre as conversas com os amigos do que a partir das aulas em si, indignava-me com as ideologias sexistas, classistas e fóbicas que organizam a nossa sociedade. Mas, ajudar o outro a pensar de modo diferente deveria incluir o respeito ao direito do outro ser outro e ao processo que vive. Minha mãe não funciona — até hoje — quando imponho as minhas melhores e bem intencionadas ideias.
Em algum momento essa mulher percebeu que ter estudado, mesmo indo contra as ordens de meu pai e de meu avô, não a desabonaria como mulher de respeito (o que quer que isso possa significar). Mas dar-se conta disso foi um processo doloroso.
Sempre penso nisso quando reflito sobre a linguagem neutra. Acredito que nada mude significativamente por impormos uma terminação "e". Até porque — fato —, a língua nunca será neutra. A neutralidade é algo impossível aos seres humanos, se me permitem, ainda bem. Isso não significa aceitar que os preconceitos se reproduzam enquanto a língua os fortalece.
Não são poucos os portugueses que fazem questão de corrigir o uso do gerúndio pelos brasileiros. Isso é uma forma velada e tosca de xenofobia. Velada porque não se dá conta de que a língua portuguesa assim o permite e que ela varia no tempo e no espaço. Tosca porque a forma "a + infinitivo" é uma novidade dentro da língua portuguesa. Como ocorre com o castelhano, o português também dava preferência ao uso do gerúndio. Quem fugiu da tradição, mais uma vez, foi Portugal. Faz isso alguma diferença? Sejamos sinceros, nenhuma. O francês no Canadá também é mais conservador que o da França. Não em tudo, claro.
O que sim faz diferença é a ignorância que alimenta o preconceito, a impostação de voz, com algum desprezo que se sente ressentido pelo "sotaque brasileiro". A própria ideia de que uma variante linguística seja apenas um sotaque carrega preconceitos. Há de se fomentar o conhecimento e o respeito. E o diálogo. O outro, como alteridade, tem o direito de pensar de modo diferente, mas não de desrespeitar o outro.
Para um brasileiro pode ser significativo que lhe tenham roubado o direito a ser americano, porque esse termo construiu uma memória linguística que o associa aos EUA. Temos de discutir isso. Temos de conversar se luso é o melhor adjetivo para se referir ao que é português. E se espanhol e castelhano são sempre diferentes, considerando a realidade da América colonizada com apenas uma das línguas de Espanha. Discutir muito sim, mas não aos berros. Discutir como quem deseja avançar, reconstruir, olhar para o futuro. Sim, por vezes, bem se entende a vontade de berrar, mas...