António Ricciardi sabia pouco sobre o GES e assinava documentos sem ler. “Ricardo Salgado é que controlava a gestão do grupo”

Depoimento do ex-presidente do conselho superior, prestado em Outubro de 2015 ao Ministério Público, foi transmitido esta quinta-feira em tribunal, no terceiro dia do julgamento do BES.

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Ricardo Salgado e António Ricciardi na apresentação de contas do grupo, em 2002. Rui Gaudêncio (arquivo)
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O presidente do conselho superior do Grupo Espírito Santo, António Ricciardi, deixou claro num depoimento prestado em Outubro de 2015 ao Ministério Público e reproduzido esta quinta-feira no Juízo Central Criminal de Lisboa no terceiro dia do julgamento do processo sobre o colapso do império familiar, que assinava documentos sem ler. Não o disse expressamente, mas ficou subentendido, já que garantiu desconhecer diversos factos que constavam em documentos assinados por si, com os quais foi confrontado e cuja assinatura confirmou.

Ao longo de hora e meia de declarações a uma equipa liderada pelo procurador José Ranito, foram muitas as vezes que António Ricciardi, então com 96 anos, disse não saber esclarecer as dúvidas que o Ministério Público lhe colocava. Foi assim, por exemplo, com a actividade de diversas empresas do grupo, como a da Espírito Santo Resources ou a ES Enterprises, considerada o saco azul do grupo, que terá sido usada para pagar luvas – transferências essas que António Ricciardi ordenou e assinou, pelo menos em parte.

Sem saber explicar bem o que era a Gespar, que disse conhecer, ao contrário de outras empresas que faziam parte do labirinto de sociedades do grupo, levou com um esclarecimento de José Ranito: “Era uma sociedade que geria fortunas, incluindo as vossas.”

Outras vezes, o “comandante Ricciardi”, como era conhecido, disse não se lembrar do que o Ministério Público queria saber. Mas não teve dúvidas em apontar Ricardo Salgado como o líder absoluto do grupo e “o único” que conhecia tudo o que se passava tanto na área financeira como na área não financeira. “Ricardo Salgado é que controlava a gestão do grupo”, afirmou Ricciardi, que aparece no vídeo do depoimento sentado ao lado do seu advogado, João Nabais.

Afirmou ainda que a maior parte dos assuntos não eram discutidos internamento no grupo, mesmo no conselho superior onde estavam representados os cinco ramos da família, sendo as decisões tomadas por Ricardo Salgado, que tratava com pessoas da sua confiança a respectiva concretização, cabendo a António Ricciardi apenas assinar. Para tal, contou, dirigia-se diariamente a umas instalações na Rua de S. Bernardo, para despachar o expediente. Muitas vezes era o antigo controller financeiro do grupo, José Castella – um dos principais arguidos do caso, que morreu em Março de 2020, uns meses antes de ser proferida a acusação deste processo – que levava os documentos para assinar.

Sobre o buraco de mais de mil milhões de euros nas contas de uma holding de topo do grupo, a Espírito Santo Internacional (ESI), António Ricciardi garantiu que só ficou a conhecer a sua existência em Novembro de 2013, uns meses antes do colapso do banco da família, em Agosto de 2014. Tal aconteceu numa reunião do conselho superior em que Ricardo Salgado assumiu a existência de um erro nas contas, tendo ficado decidida uma reestruturação da parte não financeira do grupo.

Recordou-se de uma discussão ocorrida na Comporta, antes, em que um dos membros da família defendeu que se devia acabar com os negócios não financeiros do grupo, uma vez que havia problemas na sua rentabilidade. “Ricardo Salgado defendeu de forma acérrima a continuidade da parte não financeira”, conta.

No interrogatório, António Ricciardi (que morreu em 2022, aos 102 anos) revelou que o contabilista do GES, Francisco Machado da Cruz, lhe confidenciou que tinha recebido indicações de Salgado para manipular as contas a partir de 2008. José Ranito questionou António Ricciardi sobre se alguma vez o homem forte do grupo tinha dito que manipulava as contas, tendo o comandante respondido que não. No entanto, o magistrado do Ministério Público insistiu se haveria essa intenção, tendo o antigo presidente do conselho superior do GES afirmado que, “garantidamente, havia uma intenção”.

O antigo presidente do conselho superior do Grupo Espírito Santo (GES) argumentou que até 2013 manteve uma “confiança absoluta” em Salgado.

Já no fim do depoimento, José Ranito confrontou Ricciardi com um documento de Abril de 2014 que dava conta dos honorários milionários que iriam ser pagos aos vários ramos da família, representados no conselho superior, numa altura em que já era conhecido o enorme buraco das contas da ESI. “Isto aconteceu una meses antes da resolução do banco”, fazia notar o procurador. Ricciardi admitiu que não havia relação entre a situação do grupo, nomeadamente os resultados financeiros, e os honorários pagos.

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