Ricardo Salgado já foi castigado

O homem que já foi o mais poderoso do país perdeu, no primeiro dia do seu julgamento, aquilo que tanto prezava e cultivava. A dignidade.

Foto
Ricardo Salgado foi confrontado por um lesado do BES à chegada ao julgamento Daniel Rocha
Ouça este artigo
00:00
03:46

É uma imagem difícil. Ricardo Salgado caminha até ao tribunal apoiado na sua mulher. Está cercado por microfones e jornalistas. É confrontado com as consequências dos seus actos, tantos anos depois, antes mesmo de ser julgado por eles na justiça, finalmente. Na imagem captada pelo fotojornalista do PÚBLICO Daniel Rocha, o homem que chegou a ser o mais poderoso do país está envelhecido, doente, sem “consciência”, como o descreveu o seu advogado. A relação de poder mudou. O poder agora está do outro lado, do lesado que protesta, cuja energia vem da revolta e raiva acumulada por anos de espera e por uma perda sem fim à vista. E o poder agora é do Estado, que o vai julgar, depois de ter sido enganado tantas e tão exuberantes vezes.

Antes de a justiça seguir o seu lento e absurdo rumo até a uma eventual sentença e depois de os supervisores já o terem condenado, neste dia, nesta manhã de terça-feira, Ricardo Salgado já foi castigado. De uma forma cruel, para alguns, de um modo justo porque inevitável, para outros, talvez insuficiente para a maioria. Para o antigo presidente do BES – que foi a trave mestra de um império financeiro que exercia um domínio em todas as áreas de poder em Portugal –, o castigo que mais o pune foi aplicado à sua dignidade. Aquela que o ex-banqueiro quis defender quando se dirigiu ao Parlamento pela primeira vez depois da queda do Grupo Espírito Santo. A dignidade que preservava e cultivava enquanto liderava o seu banco, a partir do seu palanque, acima de tudo e de todos, intocável, impenetrável, deificado pelos seus, temido por muitos, respeitado por todos.

Ricardo Salgado está frágil fisicamente, derrotado moralmente, uma figura diminuída perante o agigantamento da revolta popular, como ilustra tão bem o enquadramento da imagem captada pelo PÚBLICO. Um homem que não consegue já defender-se das dezenas de ataques que lhe foram dirigidos nos últimos dez anos e que continuarão a ser, numa sucessão impiedosa, nos próximos longos e penosos mas necessários meses de julgamento.

O homem que dominava o país já não existe, aquele que se achava acima de todos, que fazia gáudio de o exercer em cada interacção, privada ou pública. Ricardo Salgado conseguiu, a partir do seu gabinete na Avenida de Liberdade, em Lisboa, controlar a maior empresa de telecomunicações do país, a maior eléctrica, um par de outros bancos, a maior construtora nacional, a maior cimenteira, clubes de futebol, um ciclo de governo, dezenas de políticas públicas que o favoreciam, a supervisão bancária e bolsista, criou regras para si, violou-as, ergueu grupos empresariais, comprou dezenas de profissionais, alguns dos melhores do país, controlou grupos de media, jornalistas, economistas, juristas. Poucos ousavam questioná-lo. E poucos o pararam. Muito poucos. Quase nenhum.

Ricardo Salgado não pediu ajuda ao Estado quando todos os outros bancos o fizeram no período de assistência financeira. Dizia que o BES seria capaz de seguir o seu caminho sem ajuda. Uma decisão com laivos de arrogância, mas sobretudo uma afirmação do seu poder, que o colocava acima de todos, até das autoridades internacionais. Uma recusa, contudo, que mais não era do que a primeira grande tentativa de encobrimento do novelo complexo que tinha vindo a ser montado para esconder um trágico problema que se estava a agigantar. E que desembocou agora no Campus da Justiça. Isolado, apoiado apenas no seu último reduto, Ricardo Salgado já não pode prescindir da ajuda do Estado para, como qualquer cidadão, lhe garantir um julgamento justo e legal.

“O dinheiro é amoral”, disse um dia, no pico dos seus poderes. Estava errado. No primeiro dia do seu juízo final, esse erro de percepção da realidade já lhe valeu o maior castigo que podia sofrer o homem que chegou a ser o mais poderoso do país. A perda da dignidade.

Foto
Ricardo Salgado
Sugerir correcção
Ler 12 comentários