Detidos, espancados, expulsos à força: UE financia remoção de refugiados da Turquia

Investigação de consórcio de jornalistas demonstra cumplicidade europeia na linha dura de tratamento de migrantes nos centros de detenção turcos e na estratégia de repatriamentos forçados.

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Crianças num campo de refugiados na Turquia em 2016, ano em que a UE assinou o pacto com Ancara UMIT BEKTAS / REUTERS
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O pacto que a União Europeia (UE) assinou com a Turquia em 2016 para conter a imigração fora das fronteiras comunitárias devia servir para satisfazer as necessidades dos refugiados em solo turco, mas cada vez mais está a ser usado para uma política de remoção e repatriamento forçado dos migrantes, muitas vezes com recurso à violência e sem respeitar as normas humanitárias internacionais.

A denúncia está hoje nas páginas de oito jornais europeus e resulta de um trabalho de investigação de um consórcio de jornalistas feito ao longo de dez meses pelo El País, NRC, L'Espresso, Etilaat Roz, SIRAJ, Der Spiegel, Le Monde e Politico, coordenado pela Lighthouse Reports. E é divulgada numa altura em que a UE analisa a proposta da presidência húngara de multiplicar os centros de retenção de migrantes do lado de fora das fronteiras comunitárias.

Foram analisados documentos, imagens de satélite e redes sociais e entrevistada mais de uma centena de fontes na Turquia, Síria, Afeganistão e vários países europeus para reconstruir o funcionamento deste sistema de terceirização da gestão da migração às portas da UE. Segundo o El País e o Politico, consultados pelo PÚBLICO, o trabalho revela como as autoridades de Bruxelas estão conscientes da situação e até parecem satisfeitas com ela.

Desde a entrada em vigor do pacto, a Turquia já recebeu mais de 11,5 mil milhões de euros de fundos comunitários e deteve mais de dois milhões de estrangeiros em situação irregular, sobretudo afegãos (mais de 700 mil) e sírios (cerca de 400 mil), segundo dados do Ministério do Interior turco citados pelo El País. O Politico fala mesmo em quatro milhões de pessoas que fugiram para norte para escapar à devastadora guerra civil da Síria.

Com o tempo, porém, “Ancara cansou-se de actuar como o depósito de refugiados da Europa”, escreve o Politico, referindo o aumento da hostilidade contra os refugiados e as disputas políticas na Turquia. “Nos últimos anos, o Governo turco começou a utilizar grande parte desta infra-estrutura financiada pela UE para reduzir o número de requerentes de asilo que acolhe, reunindo e deportando à força sírios, afegãos e outros que enfrentam perigo nos seus países de origem”.

Os detidos entrevistados denunciaram tortura, negligência e recusa de acesso a material financiado pela UE destinado a melhorar as condições de vida. No último ano, os controlos turcos tornaram-se mais activos, com piquetes policiais móveis implantados em bairros com forte presença estrangeira, para verificar documentos através de um sistema informático financiado pela UE.

Os veículos com o emblema azul e dourado da UE e a estrela e o crescente turcos andam agora à caça de imigrantes sem documentos e transportam-nos através da fronteira contra a sua vontade. Em princípio, escreve o El País, apenas aqueles que não possuem documentos válidos deveriam temer a prisão, mas, de acordo com advogados e vítimas, em muitos casos as pessoas também são presas no processo de renovação das suas autorizações de residência ou devido a queixas de cidadãos turcos.

A investigação revelou que a Comissão Europeia, o órgão executivo da UE responsável pela supervisão dos fundos atribuídos à Turquia, ignorou repetidamente os avisos – de grupos da sociedade civil, advogados, diplomatas e até do seu próprio pessoal – que indicavam que os fundos da UE estavam a ser utilizados para apoiar um sistema de deportação que expulsava dezenas de milhares de requerentes de asilo.

Questionado sobre se a Comissão Europeia tem conhecimento de que a Turquia está agora a utilizar infra-estruturas financiadas pela UE para efectuar deportações forçadas, um ex-funcionário que esteve ligado ao processo afirmou, citado pelo Politico: “Eles sabem. Toda a gente sabe. As pessoas estão a fechar os olhos.”

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