Gorjetas: a simpatia também paga impostos?

Numa sociedade onde tudo é normalizado e regrado em percentagem, onde um presente está institucionalizado, onde fica o espaço para o altruísmo e a mais pura bondade?

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Eu gosto de dar gorjetas às pessoas quando consigo. Entendo que um serviço que me foi conveniente ou prestado com especial cuidado merece uma recompensa por via maior do que as palavras. De certo modo, é um incentivo para ir tornando o mundo melhor. As pessoas competentes ganham um extra da minha vontade, as que se resumem ao necessário ganham exactamente isso: um salário (idealmente decente, mas isso é outra discussão).

Ainda que receber gorjetas tenha o seu rasgo de sorte, é normalmente uma consequência do empenho que cada um põe naquilo que faz. A pessoa que se esforça mais provavelmente sacrifica outras coisas para oferecer um serviço superior, enquanto quem não o faz opta por focar o seu tempo noutras prioridades, o que também é legítimo. Ainda que o mundo não seja assim tão preto e branco, o racional-base é este.

Eis que descubro que o estado procura a sua modesta fatia do bolo de gorjeta, dado que este já está a tender mais para tarte do que para queque. Não me entendam mal, eu sou a favor do estado levar a sua parte quando se justifica. Em parte, é uma forma dignificante de contribuir para a sociedade, pagar automaticamente sem grandes stresses com uma parte do trabalho que fazemos.

Sinto, porém, que se está a rapar o tacho quando a entidade que taxa resolve rapar uma parte da nossa boa vontade a outros que nos trataram bem. Não é agradável ter a noção que um ato de simpatia perante outro levou com a nódoa de agora estar regrado e ter uma percentagem associada. É uma pescadinha de rabo na boca sem sentido: se eu pago uma parte para serviços que o estado me vá prestar, a minha gorjeta vai então voltar eventualmente para mim? Eu que sempre pensei que estava a dar um presente ao senhor desconhecido que me atendeu com uma radiante disposição, agora sei que também estou a pagar o meu transporte ou saúde.

As gorjetas fazem parte da vida de quem faz atendimento ao cliente e não são comuns fora desse âmbito. Ninguém espera que lhe batam à porta de casa a meio da tarde para dar dois euros por ter erguido uma ponte com sucesso. Tenho parentes que dão bolos aos médicos como agradecimento, em que gorjetas ou semelhante não são a prática comum. Considerando que um bolo é algo que não consta no salário, será então um rendimento? É natural que um não é igual ao outro, porém fará sentido pensar porque é que não se costuma dar bolos ou beijinhos aos empregados de mesa, ou a quem nos conduz como agradecimento.

O dinheiro é o presente que safa qualquer situação pois é sempre útil. Quando não queremos pensar muito no presente ou conhecemos alguém menos bem é recorrente dar-se “a notinha”. O mesmo acontece aqui, nós provavelmente não conhecemos aquela pessoa, e provavelmente nunca iremos voltar a ter uma interacção com ela, por isso uma gorjeta em dinheiro tem sempre utilidade para quem fez bem o serviço. É no fundo uma forma de não darmos tralha ao trabalhador, até porque é difícil prever quando é que um serviço é merecedor de maior ou menor recompensa até o termos. Deverá então um presente ou doação ser entendido como um rendimento e como tal taxado?

Numa sociedade onde tudo é normalizado e regrado em percentagem, onde um presente está institucionalizado, onde fica o espaço para o altruísmo e a mais pura bondade? Na procura de todos termos um bocadinho mais, de termos aquela migalha que nunca deveria ser nossa, acabamos a ficar todos com um bocadinho nosso a menos.

No extremo, sinto que a questão não é sobre normalizar taxas de rendimentos, mas sim sobre começar a taxar presentes. É para mim perverso pensar que a interacção banal de recompensar outro que nos fez algo por bem, que na realidade só é em dinheiro dadas as circunstâncias da interacção, tem pessoas a pedir justiça pela doação do presente “a bem de todos”.

Como futuro engenheiro, e apreciando a realidade matemática das coisas, acho que nem tudo tem de estar decomposto em números, percentagens e “divisões justas”. A vida não tem de ser uma checklist. Há coisas que só têm prazer e razão por serem simples. Oxalá isto não desagúe nas “notinhas” começarem a vir trocadas em moedinhas para todos ficarmos com a parte que nos corresponde. A minha gorjeta passaria a ser o ovo Kinder. Qual seria a sua?

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