Rússia recrutou deputado irlandês (ainda em funções) durante as negociações do “Brexit”

Deputado foi abordado para acicatar tensões entre Reino Unido, UE e Irlanda e fazer contactos com paramilitares lealistas na Irlanda do Norte. Não foi detido ou acusado porque não cometeu crimes.

Foto
Sessão plenária no Parlamento irlandês Kenny Holston/Pool via REUTERS
Ouça este artigo
00:00
04:35

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Um membro do Oireachtas, o Parlamento da República da Irlanda, foi recrutado por agentes ligados aos serviços secretos militares da Federação Russa em 2019, para ajudar a acicatar as tensões durante as negociações para a saída do Reino Unido da União Europeia. A revelação foi feita pelo Sunday Times e confirmada pelo Politico, que citam testemunhos e documentação oficial dos serviços de segurança irlandeses, e que informam que o deputado em causa ainda está em funções.

De acordo com o site de notícias europeias, o deputado é membro de um partido da oposição ao Governo de coligação entre Fianna Fáil, Fine Gael e Verdes. A oposição com assento parlamentar inclui o Sinn Féin, o Partido Trabalhista, os Sociais-Democratas, o Pessoas Antes dos Lucros-Solidariedade, a Irlanda Independente, o Aontú, o Direito à Mudança, e ainda 17 deputados independentes.

Depois de Eamon Ryan, ministro do Ambiente e dos Transportes, ter defendido, na segunda-feira, que a identidade do deputado deve ser revelada por motivos de “segurança”, o Irish Times noticiou esta terça-feira que a polícia irlandesa tem compilada uma lista de membros do Parlamento e outras pessoas, incluindo académicos, que acredita terem sido abordados por pessoas ligadas aos serviços secretos russos.

O deputado recrutado não foi identificado, detido ou acusado até ao momento, porque não teve acesso a material confidencial ou informação sensível, nem há provas de que recebeu qualquer pagamento. Ou seja, não cometeu nenhum crime nem pôs em causa segredos de Estado.

Os serviços secretos da Garda (polícia nacional irlandesa) e os serviços secretos da J2 (Forças Armadas) acreditam que a pessoa em causa é, essencialmente, um activo para influenciar o debate público, disseminar desinformação ou fazer contactos, e continuam a monitorizar as suas actividades e a considerá-lo uma “pessoa de interesse”.

“Cobalt” e o “Brexit”

Segundo o Sunday Times, que dá ao deputado o nome fictício de “Cobalt”, este começou a ser vigiado por recomendação dos serviços de informação do Reino Unido. As autoridades irlandesas descobriram, então, que “Cobalt” se tinha reunido com Serguei Prokopiev, um coronel dos serviços secretos militares russos (GRU) que se apresentava como funcionário diplomático na Embaixada da Rússia em Dublin.

Num desses encontros com Prokopiev – um de quatro diplomatas russos que o Governo irlandês acabou por expulsar do país em 2022, na sequência da invasão russa da Ucrânia –, realizado nos arredores da capital irlandesa, o deputado aceitou pôr os russos em contacto com grupos paramilitares lealistas da Irlanda do Norte, a facção mais extremista do protestantismo unionista que opera naquele território britânico, em oposição aos republicanos pró-unificação da ilha irlandesa.

“Cobalt” também viajou para países europeus onde os GRU operam sem grandes dificuldades, segundo documentos de viagem vistos pelo Sunday Times.

Perante a possibilidade de edificação de uma fronteira física entre o território pertencente ao Reino Unido e a República da Irlanda (Estado-membro da UE) ou de uma “fronteira aduaneira” ao longo do mar da Irlanda, duas soluções discutidas nas negociações do “Brexit”, os serviços secretos irlandeses acreditam que a Rússia pretendia explorar as ameaças de violência na Irlanda do Norte para tentar minar as relações entre Londres, Dublin e Bruxelas.

Irlanda, um “recreio” para a Rússia

Questionado sobre o caso na segunda-feira, o primeiro-ministro irlandês, Simon Harris, disse que o mesmo “não deve ser surpresa para ninguém”. “A Rússia procura distorcer a opinião pública e é activa nessa vertente em todo o mundo. A Irlanda não é imune a isso”, explicou o chefe do Governo.

Citado pelo Sunday Times, o especialista em Rússia Mark Galeotti diz que a possibilidade de utilização de um político irlandês para acicatar o debate público num tema tão polarizador e sensível como foi o “Brexit” foi vista pelo Kremlin como uma “oportunidade fantástica”.

“Onde quer que existam linhas de fractura social, um agente dos serviços secretos russos inteligente, implacável, imaginativo e sem escrúpulos pode tentar aumentá-las um pouco mais”, explica Galeotti. “Os políticos são alvos clássicos dos serviços russos. Têm acesso, têm carreiras em que trabalham em comissões e têm grandes egos. O ego é uma das formas mais fiáveis de recrutar pessoas.”

Na mesma linha, em declarações ao Irish Times, Cathal Berry, antigo soldado e actual deputado independente do Dáil Éireann, a câmara baixa do Parlamento, diz mesmo que a República da Irlanda é “um recreio” para os agentes russos envolvidos em operações de recrutamento de políticos e outros activos.

“Se alguém quiser afectar um país ocidental com grandes activos e com uma cultura de segurança deficiente, a Irlanda é o ponto zero”, garante Berry. “Aqui, os russos obtêm o máximo impacto com o mínimo esforço.”

Sugerir correcção
Ler 8 comentários