No Afeganistão, a crónica visual do “apartheid de género” taliban

A dupla jornalística Kiana Hayeri e Mélissa Cornet passou meio ano no Afeganistão junto de mais de cem meninas e mulheres para quem, sob o jugo taliban, existir se tornou “quase impossível”

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Desde que os taliban retomaram o poder no Afeganistão, em Agosto de 2021, após 20 anos de guerra no país contra os EUA e aliados, aquilo a que a activista Malala Yousafzai chama de “apartheid de género” regressou em força ao país.

As meninas e mulheres afegãs foram praticamente “apagadas” da sociedade por um conjunto de leis que as impede de exercer direitos que, em quase todos os países do mundo, são tidos por básicos e elementares. Os ensinos secundário e universitário estão, hoje, interditos a mulheres, que estão também proibidas de votar, exercer cargos públicos, trabalhar, de viajar, de sair de casa sem a supervisão de um pai, irmão, marido ou filho, impedidas de se vestirem como quiserem, forçadas a tapar o rosto, e, mais recentemente, impossibilitadas de cantar ou ler alto, em público.

A dupla Kiana Hayeri e Mélissa Cornet, fotojornalista iraniana e investigadora canadiana, respectivamente, deslocou-se até ao Afeganistão onde, em 2024, desenvolveu, com o apoio financeiro da Fondation Carmignac, trabalho documental sobre a condição feminina no país. Na primeira metade do ano, Kiana e Mélissa visitaram sete províncias afegãs e mergulharam no difícil quotidiano das meninas e mulheres do país. O projecto, composto por fotografias e vídeos de Hayeri, texto de Cornet e arte produzida por meninas e mulheres afegãs, tem o título No Woman's Land - An Intimate Look Into the Battle for Women's rights in Afghanistan e foi o vencedor da 14.ª edição do Prémio de Fotojornalismo Carmignac, anunciado recentemente.

As fotografias de Hayeri dão conta do mergulho profundo nas vidas e histórias de mais de cem meninas e mulheres — estudantes, activistas, jornalistas, mães — que a dupla conheceu no Afeganistão. Todas, sem excepção, sentiram uma diferença abismal nas suas vidas quando os taliban tomaram o poder, em Agosto de 2021. O desalento tomou conta da generalidade. Uma activista, que entretanto abandonou o Afeganistão, contou à dupla que as mulheres afegãs “esqueceram o que é a alegria”. “Não sabemos onde encontrá-la. Eu perdi toda a motivação. Choro sozinha, escondida. É como se alguém me tivesse trancado num quarto para nunca me deixar sair.”

Cabul, Afeganistão, 3 de Fevereiro, 2024. Raparigas brincam na neve, atrás de um bloco de apartamentos. Desde a tomada do poder dos taliban, o direito das meninas e mulheres de saírem de casa sem acompanhamento masculino foi restringido. Durante uma hora, após uma tempestade, elas conseguiram sair e brincar na neve, sempre vigilantes face a patrulhas taliban ©Kiana Hayeri para a Fondation Carmignac
Jalal Abad, Nangarhar, Afeganistão, 12 de Fevereiro, 2024. Uma família, recentemente deportada do Paquistão, instalou-se temporariamente no bairro suburbano de Jalal Abad, no leste do Afeganistão. Centenas de milhares de afegãos foram forçados a sair do Paquistão na sequência da actual repressão contra estrangeiros ilegais, alguns dos quais após décadas de vida no Paquistão. As mulheres e as raparigas são as mais afectadas pelas consequências da deslocação forçada, registando, por exemplo, elevadas taxas de casamento infantil ©Kiana Hayeri para a Fondation Carmignac
Gardi, Nangarhar, Afeganistão, 13 de Fevereiro, 2024. Não existem edifícios escolares no distrito de Gardi Ghos, as aulas decorrem ao sol, sobre terra batida. Enquanto os rapazes podem completar o 12.º ano, as raparigas só podem frequentar as aulas até ao 6.º ano, estando excluídas das escolas secundárias e das universidades. Em alguns distritos, a escola está proibida às meninas após a terceira classe ©Kiana Hayeri para a Fondation Carmignac
Badakhshan, Afeganistão, 10 de Maio, 2024. A filha de Kheshroo e a sua prima, ambas alunas do 11.º ano, suicidaram-se há cerca de um ano após terem sido expulsas da escola. A família visita o local onde se afogaram, em frente às montanhas de Wakhan, uma região que nunca tinha sido, até 2021, controlada pelos taliban ©Kiana Hayeri para a Fondation Carmignac
Cabul, Afeganistão, 17 de Fevereiro, 2024. Raparigas frequentam um instituto privado que segue o currículo americano em inglês, que não é certificado no Afeganistão. O sonho das 700 alunas é, um dia, conseguirem emigrar e frequentar a universidade, uma vez que no país o ensino superior está vedado às mulheres ©Kiana Hayeri para a Fondation Carmignac
Cabul, Afeganistão, 23 de Fevereiro, 2024. Um grupo de raparigas adolescentes dança na festa de aniversário de uma amiga. A música e a dança foram proibidas pelos taliban, mas as mulheres continuam a dançar e a festejar na privacidade das suas casas ©Kiana Hayeri para a Fondation Carmignac
Cabul, Afeganistão, 29 de Fevereiro, 2024. Jornalistas do sexo feminino a trabalhar no escritório de um meio de comunicação social com foco nas mulheres. Desde que os talibans chegaram ao poder, em Agosto de 2021, 43% dos meios de comunicação social afegãos desapareceram. As mulheres jornalistas são obrigadas a cobrir o rosto, a viajar com um acompanhante, proibidas de entrevistar funcionários e sujeitas a assédio e ameaças ©Kiana Hayeri para a Fondation Carmignac
Saydabad, Wardak, Afeganistão, 22 de Fevereiro, 2024. Saira, 50 anos, posa em sua casa em frente à bandeira do Emirado Islâmico do Afeganistão, o regime taliban. “Costumávamos dobrar estas bandeiras e usá-las sobre almofadas. Agora estão penduradas nas paredes. Tenho muito orgulho nelas. Agora estamos muito felizes.” ©Kiana Hayeri para a Fondation Carmignac,©Kiana Hayeri para a Fondation Carmignac
Um cartaz rasgado mostra como as mulheres devem cobrir o rosto: com uma burqa, ou chador, que cobre todo o rosto, ou com um niqab, que deixa apenas os olhos descobertos ©Kiana Hayeri para a Fondation Carmignac
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Cabul, Afeganistão, 3 de Fevereiro, 2024. Raparigas brincam na neve, atrás de um bloco de apartamentos. Desde a tomada do poder dos taliban, o direito das meninas e mulheres de saírem de casa sem acompanhamento masculino foi restringido. Durante uma hora, após uma tempestade, elas conseguiram sair e brincar na neve, sempre vigilantes face a patrulhas taliban ©Kiana Hayeri para a Fondation Carmignac

Em Cabul, uma das mulheres que Hayeri e Cornet conheceram ao longo da sua jornada é Wazhamah, nome fictício, que dá a conhecer dois tristes episódios vividos às mãos dos taliban por duas gerações da mesma família, separados por um intervalo de 20 anos. “Em 1998, Wazhmah tinha 19 anos e vivia na cidade de Mazar-e-Sharif, na província de Balkh, no norte”, narra Cornet num dos cinco ensaios que produziu em que descreve a realidade do país, intitulado Taliban 2.0: a Return to the 1990's?. “Nesse ano, Wazhmah tinha terminado a escola secundária e tinha acabado de passar o exame de entrada à universidade. Tinha sido aceite na Faculdade de Estudos Agrícolas, num curso que começaria a frequentar nesse Outono.” Em Agosto desse ano, os taliban tomaram Mazar-e-Sharif e baniram todas as mulheres das universidades e espaços públicos. A jovem acabaria por casar-se e ter três filhos.

Anos mais tarde, em 2021, a filha de Wazhmah, Tahmeena, candidatou-se à universidade e foi aceite na Faculdade de Medicina de Cabul. Ainda conseguiu frequentar a instituição até Dezembro de 2022; a tomada de posse dos taliban, em Agosto desse ano, desfez o sonho de se tornar médica. “Vi a história a repetir-se”, contou a mãe afegã a Cornet. “Hoje, o meu maior sonho é que as universidades reabram e o meu maior medo é que a minha filha não realize os seus sonhos. Os meus rapazes podem alcançar o que quiserem. Queria que ela se realizasse, especialmente porque eu também não pude fazê-lo.” No presente, Tahmeena fica em casa, um lugar que “parece pesado, imerso no silêncio e na dor do coração partido dos pais”, escreve a canadiana.

“Para as mulheres e meninas existir simplesmente parece quase impossível”, escreve no mesmo ensaio. “Dar um passeio, dançar com os amigos, tocar música, tudo isso são desafios para os taliban, que redigiram mais de 80 regras que atentam contra os direitos das mulheres.”

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Cabul, Afeganistão, 2 de Março, 2024. Um grupo de raparigas adolescentes festeja o aniversário de uma amiga em casa dela. A música e a dança foram proibidas pelos taliban, mas as mulheres continuam a dançar e a festejar na privacidade das suas casas ©Kiana Hayeri para a Fondation Carmignac

Para um grupo de três amigas adolescentes, celebrar o aniversário de uma delas é um desafio, mas também um momento de libertação e de resistência. Por debaixo das burqas, abayas e hijabs sob os quais se movimentam em espaço público, as três adolescentes levam roupas coloridas, que expõem assim que entram no apartamento onde irá decorrer a festa. “A aniversariante vestia um vestido longo e brilhante, preto e dourado, feito pela sua mãe”, descreve Cornet. “As outras raparigas traziam vestidos tradicionais, coloridos e brilhantes, e os seus cabelos, longos até à cintura, estavam soltos ou em trança - não havia necessidade de estarem tapados debaixo de tecido aqui.” As adolescentes ouviram pop afegão, dançaram e fizeram vídeos com os seus telefones. “A maioria dos momentos de alegria decorrem à porta fechada, no único território que resta às mulheres”, observa a investigadora.

À porta fechada, envoltas, em muitos casos, em secretismo, funcionam também as escolas femininas clandestinas – um fenómeno que está longe de ser novidade no Afeganistão, onde o domínio taliban se impôs entre 1996 e 2001. A equipa iraniana-canadiana pôde apurar que, no Afeganistão, ressurgiram milhares de escolas que, à revelia do regime taliban, continuam a ensinar as meninas para além da idade que, no país, é considerada legal. As escolas funcionam, geralmente, em lugares discretos, em zonas residenciais, na proximidade das casas das suas alunas. Num bairro em Hazara, em Cabul, a fotojornalista e a investigadora constataram que “a maioria das pessoas apoia a educação feminina e está disposta a ‘fazer vista grossa’ à existência das escolas”.

Mas nem sempre é fácil convencer os pais a deixar as suas filhas frequentarem a escola clandestina, uma vez que fazê-lo é ilegal. “Há sempre um equilíbrio delicado entre a felicidade da filha e o risco”, escreve Cornet. Todos os envolvidos estão proibidos de falar sobre a escola em público; as meninas não usam mochilas quando se deslocam para a escola, mas sim sacos de plástico, para não levantarem suspeitas, e existem planos de emergência para colocar em marcha em caso de rusga das autoridades.

Em Janeiro de 2024, uma “onda de detenções de mulheres e raparigas adolescentes foi o maior golpe contra as escolas até à data”, narra a canadiana no ensaio Secret Schools: Defying Education Bans, que dedica ao capítulo da educação. “Utilizando a desculpa de hijabs impróprios, os taliban começaram a deter mulheres e raparigas durante horas ou dias, o que provocou uma onde de pânico”. Nessa altura, alguns pais retraíram-se e, com medo, optaram por afastar as suas filhas da escola. Aquelas que mantiveram a frequência passaram a cumprir escrupulosamente as regras de vestuário impostas pelos taliban, com o objectivo de evitar detenções.

“Os taliban não são um movimento monolítico e muitos [dos seus membros] discordam discretamente da dureza das políticas de educação”, descreve Cornet. Um professor em Cabul explicou que um membro taliban avisava a escola local sempre que as autoridades se preparavam para uma intervenção, o que lhes permitia fechar a escola antecipadamente. “Em Junho, mil dias após o encerramento da educação feminina, cerca de 1,5 milhões de meninas foram afastadas das escolas”, refere a investigadora, citando dados recentes publicados pela UNICEF. As meninas que frequentam as escolas clandestinas deparam-se com o problema da inexistência de certificação, o que constitui um obstáculo adicional caso desejem abandonar o país.

Se em Cabul, ainda existe alguma resistência à opressão taliban, ainda que algo tímida, nas zonas rurais a realidade é totalmente díspar, refere Mèlissa Cornet. Na ruralidade, as meninas "nunca tiveram realmente acesso à educação e sempre tiveram de usar burqas, mesmo durante a ocupação americana.” Assim, muitas das mulheres que a dupla entrevistou nesses contextos “viam Agosto de 2021 como algo positivo", como o fim da guerra.

A resistência faz-se de diferentes modos. Heyri e Cornet entrevistaram também 12 jornalistas afegãs que continuam a lutar contra o regime taliban com as poucas armas de que ainda dispõem. Nos três meses que se seguiram à tomada do poder pelos taliban, mais de 40% dos órgãos de comunicação afegãos fecharam, de acordo com dados da organização Reporters Without Borders. Mais de dois terços dos 12 mil jornalistas do país abandonaram a profissão e 64 profissionais foram detidos de forma arbitrária. Uma das jornalistas entrevistada, Shahlla, nome fictício, afirmou que “lutar não é apenas pegar numa arma e ir para uma frente de guerra”. “Há muitas formas de luta e eu acho que o jornalismo é a melhor via. Estou nos meus 30 anos e ainda não vi o meu país em paz, mas espero, um dia, poder gozar da minha reforma num país em paz.”

Mèlissa Cornet mantém a esperança no futuro, após ter observado os pequenos actos de resistência. “No final, actos que geram alegria não são servem apenas para desafiar as regras dos taliban; eles desafiam a escuridão que tenta engolir o feminino como um todo. Eles lembram-nos que, mesmo no Inverno mais duro, existe uma luz que brilha, ainda que escondida, e que permanece viva.”

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