As quatro estações de Sofia Dinger são uma “máquina de fazer fantasmas”

Quatro curtos espectáculos, a apresentar de 5 a 13 de Outubro no Teatro do Bairro Alto, que se podem ver como um só: Um Ano a Flor é uma artista a correr o risco de levar a intimidade para o palco.

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Sofia Dinger entende o palco como um lugar de exposição e desprotecção total ANTÓNIO MV
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Sofia Dinger fuma um cigarro atrás do outro. Fuma e fuma e fuma, passando por vários estados emocionais e tocando, de telemóvel na mão, a playlist do seu Inverno passado. Enquanto os cigarros continuam a suceder-se, as letras das canções que manipula em palco vão falando por si. O fumo acumula-se e adensa-se até ao momento em que passa a revelar a imagem de um jacarandá. Porque, na verdade, a casa da artista, em Lisboa, tem vista para uma árvore que, sob o seu olhar, se transforma ao longo dos meses.

Um Ano a Flor, o ciclo de quatro espectáculos que Sofia Dinger apresenta no Teatro do Bairro Alto (TBA), em Lisboa, de 5 a 13 de Outubro, é justamente um prolongamento da sua casa, da sua intimidade e dos seus momentos solitários. E acompanha as quatro estações do ano. Lá fora, as que são visíveis nos jacarandás; lá dentro, aquelas que a criadora atravessa interiormente.

Os quatro espectáculos (autónomos) de Um Ano a FlorInverno, Outono, Primavera e Verão – correspondem, por isso, aos ciclos de vida, àquilo que pulsa numa vida durante um ano, e obedecem a subtítulos (A Espera, O Lamento, A Promessa, A Esperança) que Sofia Dinger usa para enquadrar os vários capítulos desta sua proposta. “Este trabalho é megalómano para alguém como eu”, diz ao PÚBLICO. “Sinto que está num lugar muito experimental e é a primeira vez que faço um trabalho com tantas questões técnicas que só podem mesmo ser experimentadas em palco.”

Por isso, e com alguma ironia, acredita que “é como se estivesse a fazer quatro peças-fantasma”. “São fantasmas até para mim, porque é como se o sentido me estivesse a ser devolvido”, sublinha. "Tanto digo que sou uma máquina de fazer fantasmas, e que os fantasmas são motores para o que estou a criar, que dou por mim, realmente, a construir peças-fantasma. E depois, por vezes, ao experimentarmos alguma ideia, é um espanto extraordinário, porque nem nos meus sonhos mais gentis conseguia chegar àquela imagem ou àquele acontecimento.”

Olhando para trás, os fantasmas sempre estiveram presentes nas criações de Sofia Dinger – Jean Renoir em A Grande Ilusão, Mário Cesariny e Rimah Jabr em Uma Canção para Ver-te Chegar. Agora, ao longo das quatro peças do ciclo, evoca Jean Cocteau e Marguerite Duras, trauteia Tom Jobim, tenta um “dueto desajustado” com Chet Baker, em que à candura do músico norte-americano responde com “um grito” soprado para dentro da trompete, num assumido lugar de distorção, de confusão, de diálogo falhado. É Outono, o subtítulo é O Lamento, e a performer convoca o Almost blue de Chet Baker para uma espécie de “Totally blue” do seu lado, num rasgo de fúria, raiva, frustração. “A minha maneira de tocar trompete”, explica, “é a verdadeira máquina de fazer fantasmas dessa estação”.

Para cada uma das estações, Sofia Dinger criou uma “máquina de fazer fantasmas”, ou uma forma de fazer emergir fantasmas e interagir com eles. Sozinha em palco, na verdade a actriz e encenadora nunca o está. Ou, como gosta de citar, “estamos sós com aquilo que amamos”. Se nos seus espectáculos há sempre esta ideia de “como tornar presente o que não está necessariamente lá para os outros verem”, a sua presença em palco equivale a uma experiência de total exposição e vulnerabilidade. “Acho que só assim faz sentido”, reconhece, “porque quando alguma coisa profundamente íntima está em risco, em perigo, está também em partilha”.

Um Ano a Flor – que no derradeiro capítulo acontece numa escala de um para um, com Sofia Dinger a sussurrar um texto a um único espectador – é toda uma partilha de alguém que está em cena para fintar a solidão, para endereçar “declarações de amor” àqueles que estão, àqueles que estiveram e àqueles que hão-de estar. Mas este espectáculo em quatro partes é também a busca de uma artista que questiona o porquê de estar em cena e de se mostrar desta maneira. Nem que, para isso, acabe a chorar. Algo que, admite, é bastante provável que possa acontecer. Talvez o objectivo último das suas criações seja, afinal, o de ser invadida por elas e nunca as domar, aceitando o palco como um lugar de completa desprotecção.

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