TJUE diz que os acordos comerciais entre a UE e Marrocos “violam autodeterminação” do Sara Ocidental

Tribunal decreta que qualquer acordo que envolva o território anexado por Marrocos obriga ao “consentimento” da população sarauí e confirma anulação. Frente Polisário celebra “triunfo da resistência”.

Foto
Tribunal de Justiça da UE, com sede no Luxemburgo, confirmou decisão do Tribunal Geral JULIEN WARNAND / EPA
Ouça este artigo
00:00
04:19

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) anunciou esta sexta-feira que os acordos de pesca e agrícolas celebrados em 2019 entre a UE e o Governo de Marrocos “violam os princípios da autodeterminação” do Sara Ocidental e, por isso, confirmou uma decisão anterior, do Tribunal Geral da UE, e decretou um período de 12 meses até à anulação dos acordos.

O TJUE diz que o “consentimento da população do Sara Ocidental” para a adopção dos acordos é “condição de validade” para as decisões tomadas pelo Conselho [da UE], em nome do bloco comunitário.

“É verdade que a Comissão [Europeia] e o Serviço Europeu para a Acção Externa realizaram consultas antes da adopção dessas decisões. No entanto, não foram dirigidas ao povo do Sara Ocidental, mas às populações que estão actualmente no território, independentemente de pertencerem ou não ao povo do Sara Ocidental”, explica o tribunal, com sede no Luxemburgo. “Dado que uma parte considerável da população [sarauí] se encontra actualmente fora do referido território, estas consultas não poderiam provar que a população deu tal consentimento”, conclui.

O TJUE também explicou que o prazo de um ano definido para a anulação dos acordos se justifica por “motivos de segurança jurídica” e pelas “consequências negativas graves” que uma anulação imediata poderia ter na política externa dos 27.

O tribunal decidiu ainda que os melões e tomates produzidos no território anexado por Marrocos e importados para outros mercados “devem indicar ‘Sara Ocidental’ como país de origem”, para “evitar enganar os consumidores”.

Num comunicado conjunto, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, e Josep Borrell, alto representante para a Política Externa e Segurança da UE, informaram que “tomaram nota” sobre os acórdãos do TJUE e que o executivo comunitário a está a “analisar” o seu conteúdo “ao pormenor”. Mas reforçaram a cooperação “estreita” com Marrocos.

“A UE reitera o elevado valor que atribui à sua parceria estratégica com Marrocos, que é de longa data, alargada e profunda. Ao longo dos anos, estabelecemos uma profunda amizade e uma cooperação sólida e multifacetada, que tencionamos levar ao próximo nível nas próximas semanas e meses”, lê-se no comunicado. “A UE tem a intenção firme de preservar e continuar a reforçar as relações estreitas com Marrocos em todos os domínios da parceria Marrocos-UE”.

“O conteúdo desta decisão contém erros jurídicos óbvios e erros factuais suspeitos”, afirmou, por sua vez, o Ministério dos Negócios Estrangeiros marroquino, também em comunicado.

Ocupação

Localizada a sul de Marrocos, entre o oceano Atlântico, o deserto do Sara e a Mauritânia, numa zona estrategicamente importante para a actividade comercial com os países africanos da região, a antiga colónia espanhola foi ocupada por Marrocos em 1975, antes do Governo de Espanha a declarar um país independente.

Um ano depois, apoiado pela Argélia, o movimento independentista Frente Polisário declarou a República Árabe Sarauí Democrática (RASD) e entrou em conflito com as forças marroquinas. Em 1991 as Nações Unidas mediaram um cessar-fogo e os sarauís – muitos deles em campos de refugiados na Argélia – aguardam, desde essa altura, que o Governo marroquino permita a realização de um referendo à autodeterminação da população do Sara Ocidental.

Marrocos trata, no entanto, o Sara Ocidental como parte integrante do país, e ocupa, actualmente, cerca de 80% de um território amplamente desértico, mas rico em fosfato e com consideráveis reservas piscatórias.

Muitas vezes referido como a “última colónia em África”, o Sara Ocidental é alvo de muitas comparações com Timor-Leste, o antigo território colonial português no Sudeste Asiático que foi anexado pela Indonésia em 1976 e que viria a alcançar a independência definitiva em 2002.

A decisão do TJUE é a última de uma série de queixas e de recursos apresentados pela Frente Polisário e pela Comissão Europeia relativos aos acordos comerciais celebrados em 2019 entre Bruxelas e Marrocos.

Em declarações à Reuters, Oubi Bouchraya, representante da Frente Polisário no Gabinete da ONU em Genebra (Suíça), celebrou a tomada de posição do tribunal como “uma vitória histórica para o povo sarauí”, que “confirma as infracções da UE e de Marrocos e a soberania permanente do povo sarauí sobre os seus recursos naturais”.

Na mesma linha, Abdula Arabi, representante do movimento independentista sarauí em Espanha, disse à Europa Press que o Sara Ocidental deve ser tratado como um “território distinto” de Marrocos e que quem não o fizer está a “reconhecer a ocupação” marroquina. Nesse sentido, afirmou, a decisão do TJUE sobre os acordos UE-Marrocos deve ser entendida como um “triunfo da resistência”.

Sugerir correcção
Ler 6 comentários