A paixão que cruzou o Atlântico e alimenta a produção de vinhos em terras portuguesas

Brasileiros estão produzindo vinhos de excelente qualidade em Portugal. Parte da produção é exportada para o Brasil. Meta é manter o padrão para atender consumidores exigentes.

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Fernanda Zuccaro, dona da Quinta Alta, afirma que a produção de vinhos se tornou a razão de sua vida Arquivo pessoal
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O Brasil é um dos principais destinos dos vinhos produzidos em Portugal, cada vez mais apreciados pelos consumidores. Se diferenciam pela qualidade e, alguns, por serem produzidos pelos próprios brasileiros. São investidores que aportaram em terras lusitanas, apostaram no plantio de uvas e no engarrafamento da bebida. “É a minha vida. Nunca me senti tão realizada” diz a paulistana Fernanda Zuccaro, 46 anos, proprietária da Quinta Alta, no Douro.

O desejo de Fernanda de produzir vinhos em Portugal é antigo. Tudo começou quando ela e o então marido, o publicitário e marqueteiro Chico Santa Rita, morto no ano passado, decidiram cruzar o Atlântico para ficar longe o suficiente da política brasileira. Os dois haviam participado de muitas campanhas eleitorais e já estavam fartos daquela vida, do debate empobrecido. “Em 2016, fizemos as malas, colocamos nossas coisas num contêiner e demos início a uma nova vida”, conta.

A Quinta Alta produz, a cada safra, cerca de 40 mil garrafas de vinhos que, em parte, abastecem Portugal, e, em parte, seguem para Brasil, Argentina, Uruguai, Canadá e Luxemburgo, entre outros. “Temos tido muita resiliência para enfrentar as adversidades do mercado, como as temperaturas mais altas, secas prolongadas. São as forças da natureza com as quais estamos sempre aprendendo a lidar”, diz a viticultora. Tais dificuldades, contudo, nem de perto chegaram ao tamanho do baque que Fernanda sofreu com a morte do marido. "É por ele que me mantenho firme. A Quinta Alta foi um projeto conjunto. Fomos parceiros desde o início”, acrescenta.

O dia nem amanhece e Fernanda já está de pé, pronta para tocar seu negócio. Ela se envolve por inteiro no processo, até que o vinho seja entregue aos compradores. “Gosto da adega, do xisto, do terroir, do cheiro da fermentação, porque possui ligação com a natureza. Minha alma está aqui”, enfatiza. “Tenho uma relação espiritual com os vinhedos, sempre ajoelho e rezo perante eles. Tudo para agradecer o que têm me proporcionado esse tempo todo”, complementa.

Gratidão é o que não falta nas palavras da brasileira. “Sou extremamente grata ao Douro por ter permitido me tornar quem sou, fazer o que faço, viver do que produzo. Criei uma relação muito forte com Portugal. Apesar das dificuldades que passamos, não desisti, pois tudo é muito gratificante”, afirma. Ela ressalta que desenvolveu tanta afinidade com a produção de vinhos, que assumiu, ao lado de Francisco Montenegro, 55, o papel de enóloga da quinta. A gestão comercial está a cargo de Nuno Moronho, 48, desde 2020.

Pura elegância

A carioca Juliana Kelman, 49, lidera, desde 2013, a Quinta Kelman, em Nelas, distrito de Viseu, na região vinícola do Dão, em uma área de sete hectares. Descendente de portugueses, ela identificou um momento econômico favorável, combinado a uma certa dose de ousadia, para investir na viticultura em Portugal.

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Juliana Kelman ressalta a qualidade dos vinhos produzidos na região do Dão, onde está a quinta de propriedade dela Arquivo pessoal

“Observando a oportunidade que se apresentava, me veio a pergunta: por que não investir na produção de vinhos em Portugal?”, conta. Antes, porém, de tomar a decisão, ela se preparou para o negócio, estudou diversas regiões vinícolas do país europeu, até fincar raízes no Dão. “Foi uma grande surpresa, pois é uma área que reúne todas as condições para se produzir vinhos de qualidade”, destaca.

Juliana não economiza nas palavras. “Os vinhos produzidos no Dão são elegantes, com propriedades difíceis de encontrar em outros lugares”, diz. As características particulares da região eram desconhecidas fora e até mesmo dentro do país. A empreendedora afirma que a primeira safra, de 2013, rendeu a produção de três rótulos a partir das castas Encruzado, Touriga Nacional e Tinta Roriz. As bebidas seguiram para vários países da Europa, Estados Unidos e Canadá.

Juliana não tem dúvidas de que foi com muita luta que construiu a reputação dos vinhos que produz, que não são vendidos em supermercados, mas destinados a restaurantes, garrafeiras especiais e clubes de vinho. Com 30 mil garrafas anualmente, a Quinta Kelman apresenta, neste ano, uma safra de rosé, 100% da uva Touriga Nacional, cuja produção é pequena, “mas de excelente qualidade”.

Por algum tempo, Juliana exportou para o Brasil, contudo, por estratégia comercial, suspendeu temporariamente a remessa para o país. Ela acredita que, em breve voltará a atender os consumidores brasileiros.

Na avaliação da viticultora, duas variáveis influenciam a produção de vinhos. A primeira, a imprevisibilidade climática, cujas implicações são significativas no resultado das colheitas das uvas. “É um desafio permanente, todo ano”, afirma. A segunda é ditada pelo mercado consumidor, que, periodicamente, altera suas preferências e tendências de comportamento. “Nenhum especialista consegue determinar quais são estas tendências”, define.

Juliana, que, de dois em dois meses, viaja do Brasil para Portugal a fim de acompanhar seus negócios, ressalta que a relação entre os dois países continua firme e forte. E sentencia: “Muitos brasileiros entraram para o mundo do vinho por causa dos vinhos portugueses, e o futuro é de crescimento”.

O olho do dono

Para Otacílio Soares da Silva Filho, 58, nascido em Teresina, mas com trajetória empresarial em Belo Horizonte, Minas Gerais, produzir vinho em Portugal se tornou um caso de amor. E isso se reflete na Quinta Domínio do Açor, na região do Dão, com cerca de 50 hectares, de onde saem vinhos de qualidade, guardando semelhanças com os elaborados na região da Borgonha, na França.

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A Quinta Domínio do Açor, na região do Dão, produz 60 mil garrafas de vinhos por ano, segundo seu proprietário, Otacílio Soares Arquivo pessoal

O empresário conta que, há quatro anos, tomou gosto pelo mundo dos vinhos, ainda que sua atividade principal seja no mercado financeiro, onde faz gestão de patrimônios. “Gosto de vinhos há muito tempo, participo de instituições como a Commanderie des Cordons Bleus e a Commanderie de Bordeaux”, afirma. Ele assinala que sua vinícola já foi premiada como revelação em vários concursos, com as bebidas tendo classificação em alguns rótulos com nota 95 Robert Parker, “uma das mais importantes do mundo”.

Para manter a qualidade e o respeito adquirido no mercado, ele contratou o enólogo Luís Lopes, 40, que já trabalhou na França, especialmente na região da Borgonha, na Suíça e na Austrália. Também conta com o especialista João Costa, 35. Ambos desenvolvem a produção de uvas autóctones, que valorizam o estilo elegante presente nos vinhos. Encruzado, Touriga Nacional, Baga, Tinta Roriz e Bical estão entre as mais de 20 castas de uvas da propriedade.

A exportação da quinta não mede distância e é dirigida ao Brasil, Estados Unidos, Japão, Alemanha e Itália. “Sei me cercar de bons profissionais, portugueses e brasileiros, que administram muito bem e conseguem uma produção de 60 mil garrafas todo ano”, declara Otacílio, que mora em Lisboa, mas circula constantemente por Brasil e Suíça, como forma de acompanhar suas diversas atribuições profissionais.

“Administro dinheiro, mas tenho sempre que saber o que está acontecendo, seja em Belo Horizonte, Minas Gerais, onde mantenho residência, seja em Genebra, na Suíça, onde sou gestor financeiro, ou na quinta, em Oliveira do Conde, no Dão, e em Lisboa. É o olho do dono é que engorda o boi”, ensina.

Tudo original

Outro caso de sucesso de brasileiros produzindo vinhos em Portugal surgiu da sociedade entre o baiano Marcelo Lima e o britânico Tony Smith, que constituíram a empresa Lima & Smith, produtora da Quinta da Covela, no Douro. A propriedade de onde sai a bebida fica no sudeste da região do Minho. São 300 mil garrafas anualmente. Os dois — um, empresário, o outro, jornalista —, investiram em um projeto de paixão e empreendedorismo.

A Quinta da Covela é tocada hoje por Camilo Mello Azevedo Lima, 45, filho de Marcelo. Para ele, os bons resultados da produção decorrem da capacidade de recuperação da área e do reencontro da equipe original que atuava na empresa, mas que havia sido desfeita durante a crise econômica de 2008 em Portugal.

Segundo o executivo, o projeto “sempre foi o de balancear os vinhos e o racional, porque não se trata de um hobby, mas de um negócio”. Ele cita importantes rótulos como os vinhos de Baião e das Tecedeiras, como representantes legítimos da Quinta. Afirma, ainda, que a conquista de prêmios reflete a boa reputação dos vinhos que produzem.

“Não tivemos receio de desenvolver rótulos novos, especialmente o Covela Avesso, produzido com a uva avesso, pioneira na região”, sublinha Camilo. Ele complementa que o perfil dos vinhos da propriedade está alinhado ao gosto internacional e ao mercado brasileiro, particularmente, São Paulo, “definitivamente nosso maior consumidor”. Na visão dele, “os laços culturais com o Brasil aumentam a familiaridade com o vinho português”.

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