Anna Jørgensen fez uma revolução na vinha dos pais

Há quatro anos, assumiu a gestão da alentejana Cortes de Cima e converteu a produção para biológico, arrancando mais de metade das vinhas. Este ano, está na lista dos 40 European Young Leaders.

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Ao assumir o leme da Herdade de Cortes de Cima, a enóloga Anna Jorgensen repensou o negócio de ponta a ponta, para assegurar "uma empresa duradoura a longo prazo". Daniel Rocha (Arquivo Público, 2020)
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Na escola na Vidigueira e também em Beringel, no Alentejo, chamavam-lhe “a loira”. “Era a única pessoa loira que andava na escola”, conta Anna Jørgensen, de 31 anos, com um ligeiro sotaque alentejano. Os pais, o dinamarquês Hans, e a californiana Carrie, também eram dos poucos estrangeiros na zona.

Em 1988, o casal chegou a Portugal de veleiro, depois de se conhecerem na Malásia, e apaixonaram-se por Cortes de Cima, na Vidigueira, a herdade agrícola onde decidiram montar negócio e expandir a família.

Anna Jørgensen e o irmão, Thomas, dois anos mais velho, cresceram na herdade “no meio do nada”, numa “infância especial”, da qual o vinho fez sempre parte. Antes de plantarem as primeiras vinhas, em 1991, os pais, que antes tinham trabalhado com óleo de palma, ainda apostaram noutras culturas. “Tomates secos e meloas”, continua Anna, hoje formada em Enologia. “A primeira vindima só aconteceu em 1996.”

Tinha três anos, mas lembra-se bem da agitação desses tempos. “Sempre gostei da vindima, era uma altura com muita actividade, vinham sempre pessoas de fora”, diz. “Como o meu pai não tem formação em Enologia e nunca trabalhou na área antes de fazer os seus próprios vinhos, contratava sempre um enólogo que vinha da Austrália, da Nova Zelândia ou da África do Sul, e havia sempre esse exchange de diferentes culturas.”

No 9.º ano, foi para um colégio interno na Dinamarca, porque os pais “queriam que conhecesse outras realidades”, conta. Viveu na Austrália cinco anos, estudou Enologia na Universidade de Adelaide e trabalhou em várias adegas, salas de prova e enoturismos. “Queria fazer várias vindimas por ano, para ganhar experiência”, afirma.

Além da Austrália, passou pela Nova Zelândia e por França, onde foi convidada para ser enóloga residente de uma quinta. Foi nessa altura, no início de 2019, que o pai a convenceu a voltar para o Alentejo. “Durante este tempo todo, nunca me passou pela cabeça voltar para Cortes de Cima”, confessa. “Era uma empresa grande, que produzia imenso vinho, e isso não era aquilo que me apaixonava.”

Se herdade começou apenas com cinco hectares de vinha, pouco a pouco foi crescendo e os vinhos foram ganhando notoriedade, primeiro fora de Portugal, e depois no país. “O estilo de vinho que eles produziam na altura era inovador para Portugal na forma de ser, eram vinhos mais frutados”, explica a enóloga. “Aquilo que conhecemos hoje como o típico vinho alentejano, com mais corpo, taninos macios, não era tão comum nos anos 90.”

Foi de tal forma inovador que, em 1998, o casal Jørgensen lançava a primeira colheita cem por cento Syrah, graças a enxertos vindos do Ródano. Aliás, como a casta não estava autorizada para a produção de regional alentejano, tiveram de chamar ao vinho Incógnito, um nome que, apesar de invulgar para um rótulo de vinho, acabou por pegar.

O projecto era “inovador e à frente do seu tempo”, elogia Anna. Mas, para ela, não fazia tanto sentido nos dias de hoje.

Uma revolução na vinha

Em 2019, quando voltou para a herdade, Cortes de Cima estava no “máximo da sua produção em área e em produção”, com 240 hectares e entre milhão e meio a dois milhões de garrafas por ano.

Em quatro anos, a área de plantação de vinha ficou reduzida a menos de metade, 97 hectares, que incluem também 32 hectares de vinhas perto de Vila Nova de Milfontes. “Ainda hoje estamos a arrancar um bocadinho de vinha”, diz Anna.

A idade do pai, hoje com 84 anos, acabou por precipitar o seu regresso. “De alguma forma, tem de se pensar no futuro, passar [o negócio] para a segunda geração.”

No ano em que voltou, acompanhou os pais na gestão da quinta para “absorver” toda a informação. No ano seguinte, pôs mãos à obra na gestão da empresa, com o objectivo claro de reduzir a produção. “Diz-se que a qualidade não é afectada pela quantidade máxima e a minha experiência é que isso, infelizmente, não é assim tão fácil.”

O processo foi o de “repensar” Cortes de Cima de uma ponta à outra, explica, tendo em conta os desafios actuais. “Como é que poderíamos criar uma empresa mais resiliente em termos económicos, sociais e ambientais, para que possa ser uma empresa duradoura a longo prazo.”

Não foi um processo fácil, nem feito ao acaso. Chamaram consultores externos para dar uma opinião sobre o estado da vinha e dos solos, e contrataram uma empresa italiana especialista em poda para decidir que vinhas deveriam salvar. “Abrimos cerca de cem buracos para perceber quais eram os mais aptos para vinha e mais sustentáveis, com maior capacidade de retenção de água”, conta Anna.

A vinha que existe agora, com certificação biológica desde o ano passado, está plantada nos melhores sítios da herdade. “O que, em teoria, nos vai dar vinhos com mais qualidade e que precisam de menos rega”, afirma.

Com a plantação em sequeiro, só duas vezes por ano é preciso regar com mais vigor. “São regas longas, normalmente de 12 horas, feitas à noite, como se fosse uma grande chuva”, continua. “Isso permite que a água vá mais fundo, não fique só na superfície [das plantas].”

A ideia é preparar as videiras para períodos de seca e Verões cada vez mais quentes. “Não sei se daqui a 20 ou 30 anos vamos ter a mesma disponibilidade de água que temos agora e sabemos que a vinha é uma planta de sequeiro. Queremos motivar as raízes a irem mais fundo buscar a água.”

Quando Anna Jørgensen voltou para a herdade, Cortes de Cima tinha 240 hectares de vinhas e produzia milhão e meio a dois milhões de garrafas por ano. Em quatro anos, a área de vinha ficou reduzida a 97 hectares e a produção desceu para 200 mil garrafas. DR
O Chaminé, um dos vinhos mais icónicos da casa, é um bom exemplo da mudança. Não só o rótulo mudou, como também o preço e o consumidor são bastante diferentes. “Há seis anos, estava no supermercado a 5 euros, hoje está a 15.” Tirar os vinhos das grandes superfícies foi uma das “grandes decisões” que tiveram de tomar. DR
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Quando Anna Jørgensen voltou para a herdade, Cortes de Cima tinha 240 hectares de vinhas e produzia milhão e meio a dois milhões de garrafas por ano. Em quatro anos, a área de vinha ficou reduzida a 97 hectares e a produção desceu para 200 mil garrafas. DR

A vindima também passou a ser feita à noite e à mão, quando antes 70% da uva era apanhada à máquina. Consequentemente, a produção também desceu a pique, com 200 mil garrafas por ano.

Chaminé, a mudança de um ícone

O perfil dos vinhos, menos alcoólicos e com uma filosofia de intervenção mínima, alterou-se. “Trabalhamos para fazer vinhos mais frescos e elegantes. Estamos num clima quente, mas não precisamos sempre de [fazer] um vinho de 15 graus”, continua Anna.

O Chaminé tinto, um dos vinhos mais icónicos da casa e o mais procurado, é um bom exemplo da mudança. Não só o rótulo mudou, como também o preço e o consumidor são bastante diferentes. “Há seis anos, estava no supermercado a 5 euros, hoje está a 15.”

Tirar os vinhos das grandes superfícies foi uma das “grandes decisões” que tiveram de tomar, sobretudo quando em 2019 70% das vendas eram no mercado nacional. “Mantivemos parceiros importantes, mas outros tivemos de mudar, porque já não se identificavam com os vinhos ou porque nós já não nos identificávamos com eles”, explica.

Se, há uns anos, os maiores consumidores no estrangeiro estavam ligados à “diáspora portuguesa” – em zonas como o Québec, no Canadá, o Brasil e em New Jersey, nos Estados Unidos –, hoje, com a produção biológica e vinhos mais leves, abriram-se outras portas. “Abrimos mais possibilidades em termos de exportação para o Norte da Europa: Noruega, Suécia, Dinamarca. E também outros países europeus como Espanha e Itália, e outras partes dos Estados Unidos, um mercado com potencial enorme.”

A área de vinha que foi “libertada” foi reaproveitada e a família mantém os quase 400 hectares contíguos de Cortes de Cima, com 100 hectares de montado e 40 de olival, incluindo duas mil oliveiras centenárias replantadas de uma herdade vizinha, que ia cortá-las para lenha. Desde 2022 que têm “práticas biodinâmicas” de agricultura, com vacas, um boi e cinco burros a fazer “o maneio holístico” – isto é, a comer ervas e a fertilizar o solo.

No início não foi fácil introduzir todas estas mudanças, mas hoje os pais parecem convencidos. “Até o gosto do meu pai para vinhos se alterou”, ri-se Anna. “Há 20 anos gostava de vinhos muito concentrados, pesados, com muito álcool.”

O esforço feito em Cortes de Cima foi reconhecido a nível internacional no início deste ano, com a inclusão de Anna na lista dos European Young Leaders pelo Friends of Europe, um think tank de Bruxelas que distingue anualmente 40 jovens europeus abaixo dos 40 anos em várias áreas.

Segundo a organização, a inscrição de Anna na lista deveu-se às suas “abordagens regenerativas na vinha”, sobretudo numa zona como o Alentejo, “com desafios acrescidos em matérias de alterações climáticas, por exemplo, a escassez de água”.

Anna não estava à espera do prémio, que a levou a uma conferência na capital belga com pessoas ligadas a meios tão diferentes como a política ou a inteligência artificial e até “uma cientista que estudava gelo na Gronelândia”.

Apesar do reconhecimento, em Portugal ainda tem havido alguma resistência dos consumidores à mudança. “É um mercado mais conservador”, observa. “As coisas evoluem de uma forma mais lenta e sentimos que estamos um bocadinho à frente do nosso tempo.”

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