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Como se constrói a memória das artes de um país?
Uma política para às artes nada mais é que um conjunto de normas e diretrizes que instituições, governos e a sociedade em geral tem de seguir.
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A cultura digital é um conceito que se refere a toda mudança ocasionada pelas tecnologias digitais e pela Internet, seja nos costumes, seja nas tradições, nas inteirações sociais, na relação com a memória histórica, individual e coletiva. A preservação da memória passou a ser um desafio para as sociedades profundamente midiatizadas. Diante do fenômeno em que todos os aspectos da vida humana foram digitalizados e são mediados por algoritmos e tecnologias digitais, impulsionados, sobretudo, pela pandemia da Covid-19, o que deve ser considerado para proteger a memória das artes de um país?
Na última semana, estive no Brasil a convite da Fundação Nacional de Artes para participar do Seminário Internacional de Políticas para as Artes: Imaginando Margens, que reuniu mais de 40 pessoas, entre artistas, especialistas, gestores públicos e agentes culturais brasileiros e de mais sete países: Bolívia, Canadá, Colômbia, Moçambique, Peru e Portugal. Múltiplas vozes de diversos campos do conhecimento refletiram sobre a proteção e o direito às artes numa primeira etapa do que o governo brasileiro pretende chamar de Política Nacional das Artes.
Uma política para às artes nada mais é que um conjunto de normas e diretrizes que instituições, governos e a sociedade em geral tem de seguir. Deve ser elaborada de modo a contemplar a participação social e a escuta ativa de seus beneficiários, neste caso, dos próprios brasileiros. E eu arriscaria dizer que, contemplando, também, milhares de artistas brasileiros que vivem fora do país e que contribuem para a construção da memória e do legado artístico do Brasil. Segundo o Itamaraty, cerca de 4,5 milhões de brasileiros vivem no exterior, o que nos colocaria como o 28° estado fora do território nacional.
A cantora e compositora Fafá de Belém, um dos maiores nomes da música brasileira, palestrante do evento e minha colega de coluna aqui no PÚBLICO Brasil, reivindicou um olhar para o Norte do Brasil ao questionar a ausência de artistas nos espaços de visibilidade, principalmente na região Sudeste. “O olhar democrático sobre todos é fundamental, mas eu vejo tanta invisibilidade de artistas amazônicos”, disse ela. Fafá de Belém citou a artista Dona Onete, paraense, que ganhou notoriedade aos 76 anos, mas segue invisível em muitos espaços mainstream em seu próprio país.
Diante do apagamento da memória de “muitos dos nossos”, uma Política Nacional para as Artes precisa contemplar a riqueza e a diversidade de um país. Como um delta, resultado do percurso de vários rios, que se encontram num movimento de dança das águas, que se misturam num jogo de cores e cosmovisões.
Os debates contemporâneos sobre o direito à memória nas artes devem rever drasticamente os apagamentos históricos, tensionando a relação entre memória individual e coletiva, acervo público e patrimônio, considerando que, na Era Digital, nossas memórias passam a ser mediadas.
Que papel terá a inteligência artificial na construção da memória das artes do Brasil? Será que as tecnologias digitais poderão ajudar a romper com o apagamento de práticas artísticas que extrapolem a visão eurocêntrica do que é arte e que foi fortemente adotada pelo Brasil nos últimos séculos? Qual será o lugar das geografias humanas das nossas comunidades tradicionais? Em tempos de digitalização, deverão ser documentadas e preservadas ou continuar esquecidas?
Quando falamos na construção de uma Política para Artes no Brasil, é inconcebível não contemplar questões estruturais do nosso tempo. Para conseguirmos avançar na construção desses fluxos de modo que o resultado não sejam páginas e páginas de textos vazios e projetos de lei que não reflitam a diversidade do país, deixo uma breve contribuição de pontos que considero fundamentais: o campo das artes precisa flertar com o debate da regulação das plataformas e das tecnologias digitais, transversal a todos os campos neste momento.
Mais: o direito cultural tem de incorporar as inteligências artificiais generativas no processo criativo e discutir direito autoral. Afinal, como saberemos se aquele novo hit do momento não foi criado por uma máquina inteligente? Por fim, e não menos importante, é a infraestrutura para armazenar essa quantidade de dados. O modelo atual de desenvolvimento tecnológico, sobretudo, em países hiperconectados como o Brasil, capitaneados por países ricos, têm revelado os impactos ambientais, a degradação da fauna e da flora, a destruição de ecossistemas marinhos. O impacto ambiental para manter esse modelo de funcionamento de sociedade e de desenvolvimento é catastrófico.
Afinal, não sobrará rios para que nossos poetas do futuro possam se inspirar e escrever poemas, ou cantos do Sabiá para que os futuros Milton Nascimento e Fernando Brant possam compor para nossas Fafás de Belém (do Pará ou de Lisboa) interpretarem.
[...] Bicho homem
Tem de cantar
Como canta o sabiá
Bicho homem
Tem de cantar
Na luz da lua
Na luz do sol
Todo canto tem o poder
De unir e nos revelar
Todo canto é um farol [...]
Trecho da canção Bicho Homem, de 1980.