Nuno da Câmara Pereira: “Eu não desconstruí o fado, construí o fado”
Quatro décadas após o seu primeiro álbum, Fado!, Nuno da Câmara Pereira apôs-lhe uma réplica para os nossos dias, Fado! Tal Como Eu o Conheci, que é agora lançado em LP.
Foi há quase 44 anos que Nuno da Câmara Pereira publicou o seu primeiro álbum, a que chamou simplesmente Fado! Fotografado no Pátio Dom Fradique (antigo solar e berço da sua família), e era essa a foto da capa, foi acompanhado nesse disco por quatro músicos: Fontes Rocha e Pedro Veiga, nas guitarras, Jorge Fernando na viola e Joel Pina na viola baixo. Gravou-o em 1981 e viu-o editado em Janeiro de 1982, com fados que iam de Não venhas tarde, Cavalo Ruço ou Acabou o arraial a Sonho Fadista ou A velha da Mouraria.
Passados todos estes anos, voltou ao mesmo pátio, tirou uma nova fotografia em pose idêntica à primeira (ambos a preto e branco) e lançou um álbum que retoma o título do primeiro, Fado! (também com ponto de exclamação), acrescentando-lhe, como subtítulo, Tal Como Eu o Conheci.
No fundo, é um regresso à mesma ideia num contexto bem diferente, como explica o fadista ao PÚBLICO: “Quero dizer com isso que a tradição ainda se cumpre e que continuo igual a mim próprio. A par e passo de todas as inovações e revoluções que fiz no fado, introduzindo a percussão (com o João Nuno Represas e o Fernando Molina) e outros instrumentos. Nessa altura, 1981, o fado havia desaparecido. E uma das formas de o recuperar foi pôr no disco Fado com ponto de exclamação, era uma questão afirmativa. Agora, já com esta provecta idade, fi-lo para repor alguma verdade na genuinidade do fado. No mesmo sítio e a afirmar: Fado! Tal Como Eu o Conheci.”
Esse sítio tem uma ligação histórica com os seus ancestrais, diz Nuno da Câmara Pereira: “O Pátio Fradique é o solar mais antigo de Lisboa e pertenceu a um dos conjurados [de 1640], Rui de Figueiredo Alarcão, que é meu antepassado. Solar dos Figueiredos, veio depois a pertencer à família Belmonte. Na altura em que fiz o meu primeiro disco, quando ainda ali moravam umas tias que não deixaram descendência, fui buscar essa imagem aos anais da memória. Uma escolha que teve na altura, tal como agora, essa memória espiritual e física. Porque foi ali que a minha avó, Belmonte, se casou e viveu toda a vida.”
Dos 12 temas que compõem o álbum, há sete originais e cinco temas vindos do cancioneiro fadista, dois de Lisboa (Marquez Linda-a-Velha, de Carlos Conde e Manuel Maria; Última tourada real de Salvaterra, de Maria Manuela Cid e Casimiro Ramos Rodrigues), dois de Coimbra (Passarinho da ribeira, de António Menano e Alberto Menano; Maria se fores ao baile, popular) e um vindo do repertório de Frei Hermano da Câmara, musicado por este a partir de um poema de Miguel Torga (Mãe). De resto, há quatro temas assinados por Nuno da Câmara Pereira, um letra e música (Marcha da Bica), outro que escreveu para um fado tradicional de Raul Ferrão (Azenhas do Mar) e dois com letra dele e música de Custódio Castelo, que assegurou a produção e os arranjos (Menino de luz e Joaninha) e que também assina outro tema, letra e música (Já tudo mudou). A par destes, há ainda o Fado Ansiães, de Edgar Nogueira, e Alentejo, com música de Carlos Garcia e letra de Alberto Franco, que no disco saiu como autor “incógnito” por se desconhecer, à data, a autoria dessa letra.
“O Edgar Nogueira é um guitarrista provecto, fez para mim essa música e letra há já uns anos e gravei-a agora”, recorda o fadista. “O Alentejo foi uma música que o Carlos Garcia, que é o viola, musicou para uma letra que um fã lhe tinha dado. Musicou-a mas, quando fomos para saber quem era o autor, ele já não se lembrava de todo. Na SPA, tive de pôr o meu nome como responsável pela letra, mas no disco pus ‘incógnito’. Só que, depois de o disco sair no Spotify, o autor apareceu e bateu-me à porta. Fiz uma carta à SPA, a dizer que o autor era aquele e não eu, mas no disco, já impresso, não fomos a tempo de mudar…”
Nascido em Lisboa, no dia 19 de Junho de 1951, Nuno da Câmara Pereira (de seu nome completo Nuno Maria de Figueiredo Cabral da Câmara Pereira) tem uma série de discos gravados, dois quais os mais recentes são Lusitânia (2009), Belmonte EmCantos Mil (2018) e Cartas d’Amor (2021, integralmente preenchido com canções do repertório de Tony de Matos).
Neste seu novo disco, recorreu ao trio que é base instrumental do fado (guitarra, viola e baixo) como forma de sublinhar o que quis transmitir no título. Com ele, gravaram Custódio Castelo na guitarra portuguesa (que na Marcha da Bica é tocada por Fernando Silva), Cajé Garcia na viola e Carlos Menezes na viola baixo. É como um regresso ao ponto de partida: “Eu trouxe a morna e a coladera para o fado, que é o contrário do que hoje em dia se faz, que é pôr o fado a imitar outras músicas, porque acham que assim é que se moderniza o fado. Ora eu peguei, por exemplo, no Meu querido, meu velho, meu amigo, do Roberto Carlos, e transformei-o em fado. Eu não desconstruí o fado, construí o fado.”