Condenados a beber das águas rasas

O homem pode beber das águas rasas e permanecer ignorante, com pouco conhecimento, ou sorver das profundas para adquirir saber. Há possibilidade da escolha.

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Podemos aprender muito com as mitologias. Elas nos ajudam a identificar as índoles boas e perversas e a compreender as relações humanas e suas implicações. Os mitos guardam em si a chave para o entendimento do mundo e da nossa mente analítica.

As mitologias estão repletas de lendas históricas, contos sobre deuses e deusas, guerras antigas e jornadas do mundo subterrâneo que revelam o intelecto humano e a profundeza de seus enredos.

Surgiram da necessidade que os gregos sentiam para explicar a origem da vida e os problemas da existência. Era uma preocupação instigante que se confundia com a poesia, e a mitologia e levou à criação de deuses imortais, à semelhança do ser humano.

Com base em algumas das lendas gregas, como a fonte de Pieria, compreendemos que o jogo que se joga em momentos históricos decisivos começa no pátio da escola, e que, na hora do recreio, acontece o ensaio geral do que seremos e como nos posicionaremos no mundo. Ou seja, é o momento da escolha — quando há essa possibilidade — de quais águas beber na fonte de Pieria.

Alexander Pope, um dos mais importantes poetas britânicos do século XVIII, tinha apenas 21 anos quando escreveu o Ensaio Sobre a Crítica, recorrendo à lenda grega da fonte de Pieria, que inspirava os que dela bebiam, para advertir sobre os perigos do conhecimento limitado e a importância da conquista do saber.

No livro — o primeiro sobre literatura a ser publicado no Brasil sob a égide da Coroa, pelo Conde de Aguiar, em 1810 —, uma estrofe afirmando que o conhecimento restrito é um risco, porque “goles rasos intoxicam o cérebro”.

Narra a lenda de que beber da fonte de Pieria, localizada na antiga Macedônia e onde nasceram as nove musas das artes e das ciências, determinava o arcabouço do intelecto humano. O homem podia beber das águas rasas e permanecer ignorante, com pouco conhecimento, ou sorver das profundas para adquirir saber. Havia então a possibilidade da escolha.

É uma lenda sobre a importância da cultura e dos riscos do pouco conhecimento. Ensina que as águas fundas educam a mente por meio de leituras, pesquisas e discussões edificantes. Indica que quem lê e estuda, pensa e age melhor, tornando-se capaz de fundamentar decisões com base no conhecimento acumulado ao longo dos anos. Já quem não vai além das bordas da fonte, permanece na escuridão da ignorância.

Infelizmente, não é uma escolha para todos no Brasil, onde mais de um milhão de crianças entre 4 e 5 anos estão fora da escola. O mesmo ocorrendo com adolescentes entre 15 e 17 anos. Estima-se que 9,8 milhões de jovens, entre 15 e 29 anos, ou seja, 19,9% da população nesta faixa etária, não concluíram a educação básica. São os condenados a beber das águas rasas da fonte de Pieria.

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