A casta algarvia que o turismo destruiu — e depois salvou

A Negra Mole, outrora o patinho feio dos vinhos no Algarve, tem sido a salvação dos produtores na região, impulsionados pela procura dos turistas estrangeiros.

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Miguel Mimoso, enólogo residente da Arvad DR
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“É o sonho de qualquer enólogo.” Miguel Mimoso, enólogo residente da Arvad, em Estômbar, no Algarve, entusiasma-se a falar da Negra Mole, a casta algarvia que é cada vez mais a aposta da quinta. “Tem uma grande variabilidade de cores no bago”, explica. “Cachos mais brancos, mais rosados, mais tintos. Podemos tirar partido disso e tentar fazer um branco, um rosé, um tinto ou um base de espumante. É quase um sonho poder brincar com ela de todas as formas.”

Na altura da vindima, é a Negra Mole o centro das atenções da quinta, com uma actividade aberta aos turistas para apanhar as uvas e ver de perto os cachos de várias cores, aprender algumas curiosidades e provar as “brincadeiras” que a Arvad anda a fazer com a casta. Por exemplo, um late harvest de Negra Mole, uma experiência pioneira, garante, que ainda precisa de mais um ano na barrica.

Com 14 hectares da casta, Miguel Mimoso acredita que a Arvad é “o maior produtor em área de Negra Mole do Algarve”, orgulha-se. “Mas metade dessa área ainda não está a produzir. São plantações do ano passado e deste ano; só em 2026 vamos estar em pleno.”

Mafalda Garcia de Matos, filha do fundador da quinta e agora a liderar o projecto de enoturismo, confessa que, no início, a casta algarvia não era uma prioridade. “Plantámos a vinha em 2016 e não incluímos logo Negra Mole”, conta. “Começámos a trabalhar com uma quinta vizinha com vinhas com mais de 50 anos de Negra Mole e agarrámos nessa vinha original e trouxemo-la para aqui.”

Quando o pai de Mafalda comprou a quinta com vista para o rio Arade — é daí que vem Arvad, o nome que os fenícios terão dado ao rio —, o objectivo era que fosse uma exploração de suinicultura. A paisagem e a localização fizeram com que o plano mudasse. “Tornou-se claro que tinha de ser transformado num projecto turístico que as pessoas pudessem conhecer e fazer parte.”

Durante todo o ano, a quinta recebe turistas para provas de vinhos, almoços e sunsets (“90% estrangeiros”, sublinha Mafalda), vindos por terra ou pelo rio, em passeios de barco. Aliás, foi construída uma “casa da comporta” a pensar nas provas e piqueniques à beira-rio e, no próximo ano, a Arvad quer ter um barco próprio. Em marcha, está também a construção de um hotel de cinco estrelas da cadeia Memmo, com perto de 40 quartos e um restaurante aberto a não-hóspedes. “Terá um spa com tratamentos de vinicultura”, adianta Mafalda.

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Um momento da vindima, durante a qual é a Negra Mole o centro das atenções da quinta, com uma actividade aberta aos turistas DR

O vinho é, aliás, o fio condutor do projecto, com a Negra Mole como bandeira. “É para onde queremos caminhar enquanto marca”, explica a directora-geral da quinta. “Arvad e Negra Mole: queremos que sejam quase dois conceitos num.”

O rótulo dos vinhos da marca, escrito à mão, teve “uma aceitação muito boa no Algarve”, garante Mafalda. Os vinhos também. “Por ser uma casta autóctone, versátil, por ter uma identidade leve, muito algarvia. Somos uma família de negócios, a oportunidade existe, sabemos como fazer e decidimos apostar.”

Nem sempre foi assim. Em tempos, a casta era vista como uma coisa de “segunda categoria”, lembra a directora-geral, “de vinho de garrafão”. “Nos últimos anos é que se tem reconhecido o seu valor. Estava a começar a ressurgir quando apostámos nos produtores locais.”

Nos próximos anos, planeiam aumentar em 10% a produção de vinhos Negra Mole, que rondam os 17,50 euros a garrafa, quase o dobro do preço dos vinhos que têm de outras castas. Este ano, o tinto, o mais popular, chegou às 18 mil garrafas e está presente em muitos restaurantes algarvios, sobretudo em “restaurantes asiáticos”.

O ano passado lançaram um rosé de seis mil garrafas e este ano a experiência foi com o branco. “Sobretudo o tinto e o rosé são vinhos muito leves, que se bebem frescos, e que vão muito bem com sushi, com peixe”, continua.

Miguel Mimoso, o enólogo da Arvad, fala num “casamento perfeito” entre o Algarve e a Negra Mole. “Estando o Algarve voltado para o turismo, estes vinhos são muito leves, fáceis de beber e podem beber-se frescos. Acredito que a Negra Mole não está aqui por acaso, está aqui porque o Algarve precisa.”

Pinot Noir do Algarve

Nuno Martins, dono do restaurante Numa, a funcionar em Portimão há três anos e recomendado pelo Guia Michelin, aposta numa carta de vinhos Negra Mole para acompanhar pratos de todo o tipo. “Ainda existe muito aquela ideia de que carne é com tinto e peixe com branco e a Negra Mole é versátil”, diz o chef que costuma visitar as quintas para conhecer os vinhos que serve. “Dá para carne e dá para peixe. É só escolher, com o sommelier, o produtor certo.”

No restaurante, tal como noutros do Algarve, tem sido o embaixador da casta autóctone, sugerindo os vinhos Negra Mole a quem procura “produtos locais”, diz. “Há clientes que querem um Pinot Noir e nós sugerimos a Negra Mole. Colocamos no mesmo patamar, é um pouco idêntica e com os estrangeiros funciona. O cliente nacional ainda fica um pouco reticente, é mais complicado para nós em relação a vinhos do Douro, do Dão ou do Alentejo.”

Em Fevereiro, Sara Silva, presidente da Comissão Vitivinícola do Algarve (CVA), dizia ao PÚBLICO que 70% dos vinhos do Algarve eram consumidos na própria região, através, sobretudo, da restauração e do enoturismo crescente.

De acordo com os últimos dados do Instituto do Vinho e da Vinha (IVV), publicados em 2022, a Negra Mole é a casta que ocupa mais área de plantação no Algarve, 17,7%. A CVA adianta que, na região, mais de 30% dos produtores apostam na Negra Mole, “cada vez mais com destaque de monovarietal”.

Além de produtores pioneiros no relançamento da casta, como os locais João Clara ou os Cabrita Wines, produtores de outras regiões do país como a Casa Santos Lima ou a Aveleda têm sido nos últimos anos atraídos para o Algarve e, consequentemente, também para a Negra Mole.

Um diamante em bruto

Martim Guedes, co-CEO da Aveleda, concorda que não era “evidente” a expansão do grupo para o Algarve. “Em 2018 estávamos a fazer uma pesquisa e o Alentejo seria provavelmente a expansão mais natural para nós.” No entanto, ficaram com a impressão de que não iam trazer nada de novo. “[O Algarve] pareceu-nos um diamante em bruto. Percebemos que havia futuro na região.”

Em 2019, compraram uma quinta com 80 hectares em Alvor e plantaram Negra Mole, que não existia. “Achámos que era uma casta muito identitária do Algarve, que não se vê noutras regiões do país, muito particular ao nível da cor, menos carregada, e com alguma comparação com o Pinot Noir, o que nos pareceu que a ajudaria a explicar aos estrangeiros”, continua.

Apesar da casta continuar “a ser muito desconhecida” no resto do país, no Algarve tem funcionado. Para já, têm 4,5 hectares de Negra Mole, um número que poderá aumentar no futuro. “Felizmente a procura tem crescido. O turista local tem procurado muito a Negra Mole e todos os anos temos plantamos alguma vinha para responder à procura, sobretudo em restaurantes.”

Bóia de salvação

Filipe de Caldas Vasconcellos, produtor e proprietário do Morgado do Quintão, em Lagoa, tem perto de dez hectares de Negra Mole, com algumas das plantações mais antigas do Algarve, com 60, 70 anos.

Teimosia da mãe, que insistiu em manter a casta, quando muitos produtores da região a substituíam por outras estrangeiras mais afamadas ou as arrancavam. “Muitas foram retiradas por uma grande ignorância e também porque as pessoas começaram a vender os terrenos para a construção de hotéis”, explica.

Curiosamente, o turismo que antes quase destruiu a casta, agora é a causa principal do seu renascimento. “Foi destruída pela hotelaria e agora, graças à hotelaria, renasce. Se não houvesse tanto turismo, não havia tanto impacte económico na região e não havia a capacidade de os produtores investirem numa casta que é desconhecida.”

No Morgado do Quintão, a Negra Mole dá origem a um clarete, um palhete, um espumante e um blanc de noir. “Permite uma grande plasticidade na execução dos vinhos”, explica Filipe. A maneira como o vinho é feito, mais aberto, com menos álcool e mais fresco, também melhorou ao longo dos anos. “Houve um amadurecimento dos enólogos, que sabem agora interpretar melhor a casta”, continua Filipe.

A sua abordagem, diz, tem sido diferente da de outros produtores, com vinhas velhas, em sequeiro e em modo biológico. “O centro do nosso projecto não é a exploração da Negra Mole do ponto de vista comercial, como alguns produtores que nem sequer gostam dela estão a fazer, mas sim um trabalho quase arqueológico, de profundidade”, afirma.

Acima de tudo, a casta tem trazido uma “grande lição de humildade” à região. Se, dos 50 produtores de vinho existentes no Algarve, “a maior parte começou por não acreditar na Negra Mole”, agora a história é outra. “Tem sido a bóia de salvação dos vinhos algarvios. Faltava alguma coisa única e especial para a região se diferenciar.”

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