Se a omnipotência fosse uma pessoa, vestiria vermelho

Quando o fogo assola o nosso país, lembramo-nos dos bombeiros – aqueles homens e mulheres de capacete e vestidos de vermelho e amarelo a salvarem o que demorou, muitas vezes, uma vida a construir.

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ADRIANO MIRANDA
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Era um final de tarde perfeito. A pandemia de covid-19 tinha dado (algumas) tréguas e as “imperiais” (ou “finos”, como preferirem) saltitavam de mãos dadas com o calor como duas crianças. Os copos rapidamente se multiplicaram e, de regresso a casa, torci um pé, caí redonda no chão do quarto (os reflexos estavam adormecidos) e abri o queixo. Desmaiada numa poça de sangue, acordei com um bombeiro a dizer-me ao ouvido: “Filipa, acorda, está tudo bem. A tua irmã está aqui. Tenta acordar. Sabes onde estás?”. Junto com os seus colegas, carregou-me escadas acima até à ambulância e, vendo a minha roupa ensanguentada, disse à minha irmã que esperariam para ela me ir buscar uma muda de roupa limpa.

Meses passaram, já a cicatriz no meu queixo era apenas um lembrete do que tinha acontecido, e o prédio onde vivia inundou. A água – que desconfio que me chegaria ao peito – cobria a cave e o primeiro vão de escadas da entrada. Da minha varanda, via as ruas feitas rio, um barco a motor vermelho a circular e os bombeiros a tentarem resgatar pessoas e animais que precisavam de ajuda. Lá estavam eles novamente. “Não falham”, pensei eu, enquanto dois ou três bombeiros, munidos de uma bomba, tentavam tirar a água que cobria a entrada do meu prédio.

Recuando alguns anos, fosse eu ou outra pessoa próxima, desmaios a meio da noite, dores fortes no peito, episódios de vómitos incontroláveis ou até ataques de pânico – eles estavam lá sempre, prontos a socorrer. E para quem vive longe da família e amigos e se sente impotente quando algo acontece, asseguro-vos, a existência deles tranquiliza.

Quando o fogo assola o nosso país, lembramo-nos dos bombeiros – aqueles homens e mulheres de capacete e vestidos de vermelho e amarelo, com mangueiras na mão e a cara enfarruscada, a combater os incêndios e a ajudar os populares e salvarem o que demorou, muitas vezes, uma vida a construir.

Mas a verdade é que, em tantas outras situações, são eles (muitos deles voluntários) os primeiros a acudir, uma primeira linha de resposta. Durante a pandemia de covid-19, aplaudimos (merecidamente e bem) à janela os médicos e enfermeiros – uma bonita homenagem, não obstante haver muitas outras coisas que pudéssemos fazer para facilitar ou ajudar o seu trabalho.

Muito à semelhança dos profissionais de saúde durante aqueles que terão sido alguns dos momentos mais desafiantes e exaustivos da sua carreira, também os bombeiros sofrem agora com a falta de meios. Quanto a isso, pouco podemos nós, comuns mortais e inermes cidadãos, fazer.

Nas redes sociais, um vídeo de um homem a atirar uma beata (acesa) para a mata enquanto os bombeiros tentavam apagar o fogo viralizou. “O verdadeiro tuga”, lia-se nas descrições.

Serve isto para dizer que, se mais não pudermos fazer, não atrapalhemos. Por vezes, acatar instruções é já uma grande ajuda. Eu não gosto particularmente do termo “heróis”: remete-me para a ficção. Mas se a omnipotência fosse uma pessoa, acredito que vestiria vermelho.

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