O que ontem aconteceu no país é estranhamente familiar: cheiro a incêndio a entrar pela janela, ar baço, depois espesso, e televisões em uníssono, porque o tema é grave. Estranhamente, há um sentimento colectivo de resignação no ar, desacompanhado pelo clima em mudança, esse sim, nada resignado, nos estios prolongados, Deus nos livre de os ter de Janeiro a Janeiro.
Vieram as imagens de satélite confirmar o que já os olhos, os ouvidos, os narizes e os corações em sobressalto nos diziam: há um manto de fumo e cinzas que cobre Aveiro e rouba o sol a imensas cidades portuguesas, antes de se entregar ao oceano, onde adormece abraçado ao anticiclone dos Açores. Vê-se do espaço, como um país modesto no mapa se destaca na imagem exterior do planeta.
Cá em baixo, sopram as notícias, cada vez que a linha de fogo muda de direcção: em toda a Europa, o oeste da Península Ibérica é particularmente propenso aos incêndios de grandes dimensões, a lembrar o estado americano da Califórnia, com manchas florestais muito maiores. A discussão pública, naturalmente, procura as raízes do problema: o clima, o novo clima, o despovoamento, o SIRESP, a Proteção Civil.
Qualquer lista peca por ser simplista. Mas há um assunto em que Portugal já deixa cadastro, de tão antigo que é, e sobre o qual a memória histórica é cada vez mais desconfortável. O assunto é, precisamente, o Cadastro de Propriedade Rústica, que está inacabado. Não há desculpas: Portugal é dos países mais antigos do mundo, tem das fronteiras mais estáveis. Como lembrou o senhor Ministro da Defesa, nem com a perda de controlo de Olivença, em 1801, as fronteiras mudaram, tão estável é o mapa de Portugal.
Como é possível que um dos países mais pacíficos da Europa seja também aquele que menos conhece os donos da terra? A ausência do Cadastro Geométrico de Propriedade Rústica é isso mesmo: os supostos proprietários desconhecem os limites dos seus terrenos, ou desentenderam-se, migraram ou faleceram. Sim, grande parte do território nacional, matos, matas e pastagens, pertence a falecidos, e assim continuará a ser, até ao Governo que tiver a coragem de acabar proativamente o Cadastro de Propriedade Rústica em todo o território nacional.
É certo que a micropropriedade ajuda muito pouco, depois de séculos e séculos de terrenos divididos pelos vários filhos. Mas, atualmente, com os Sistemas de Informação Geográfica, faz com que qualquer pessoa tenha acesso a mapas — a partir do telemóvel, se for preciso. No Alentejo, há menos área ardida do que noutras regiões do país porque as propriedades são maiores, mas também porque se conhecem os donos da terra, que a preparam para a época de incêndios.
No resto do país, infelizmente é diferente. Seria poético, se a terra sem dono fosse floresta virgem, mas não é isso que acontece. Em Portugal, muitas florestas foram progressivamente substituídas por povoamentos florestais, de uma só espécie, e que por isso são mais sensíveis aos incêndios. Noutras palavras, é uma paisagem alterada pela ação humana, que mais tarde foi abandonada. Quando alguém planta rebentos de eucalipto em terrenos sem donos conhecidos, a expectativa é de os ver crescer sem manutenção. Já dizia a expressão popular: quem semeia ventos, colhe tempestades.