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Ney Matogrosso tirou Portugal do armário
Só Ney Matogrosso é capaz de fazer o mais conservador dos portugueses sonhar com a cidadania brasileira e sair do armário.
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Nos tempos da necessária matemática dos gêneros, Ney Matogrosso sacramenta que somos todos mulheres, sendo homens, homens sendo mulheres, trans, trens, bens ou como ele mesmo diz: “Ser apenas uma letra do LGBTQIA+ é como viver numa prisão”. Ou, ainda, em declaração ao Expresso: “Não carrego 83 anos na cabeça, por isso, atrevo-me".
Ney precisa ser condecorado conjuntamente por todos os países e chefes de estado da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), com a assinatura de um protocolo no Mosteiro dos Jerónimos, como bem maior e imaterial de nossa cultura. Se o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, não o fizer, há de ser Kamala Harris, condecorando-o como comendador cultural das Américas.
Deveria ser obrigatório escutá-lo e estudá-lo nas escolas primárias lusófonas e, principalmente, nas escolas cívico-militares paulistas dos novos tempos sombrios de um velho Brasil da ditadura.
Ney Matogrosso assinou, na última sexta-feira de oxalá, a nova escritura do Coliseu dos Recreios nas portas de Santo Antão — templo supremo, santuário laico da música de língua portuguesa.
Na terrinha dos secos e molhados — conjunto de gêneros alimentícios sólidos e líquidos que se vendiam, geralmente, nas mercearias e em outras lojas de retalho —, que sucumbiram junto aos talhos, tascas, drogarias e mercearias portuguesas por conta das grandes superfícies, Ney resiste e sublinha a distribuição de seu legado musical partilhando, sem ônus a retalho, aos ouvidos do mundo. Na contramão de uma indústria fonográfica que, igualmente, levou à guilhotina a música originária cantada em português.
Viu-se e ouviu-se no Coliseu dos Recreios o que há de melhor e mais contundente na música do mundo.
Ladeado por um septeto de bambas: Sacha Amback (direção musical e teclados), Juninho Ibituruna e Felipe Roseno (percussão), Dunga (baixo), Maurício Almeida (guitarra), Aquiles Moraes (trompete) e Everson Moraes (trombone), Ney coloca seu Bloco na Rua, parte a louça toda e deixa o público como alguém que escuta música pela primeira vez e se pergunta: “Mas o que é isto?, como se estivesse a ver uma girafa pela primeira vez.
Quem sabe, dia desses, em meio à gentrificação de uma Lisboa que, aos poucos e a cada dia, perde seu requebrado e o cimo cultural de cada uma de suas setes colinas, Ney não se torne um fadista residente de uma casa de fados na Rua do Capelão ou noutra artéria icônica qualquer do fado da Mouraria à Madragoa.
Não seria surpresa alguma se ele ressuscitasse a icônica Severa — primeira fadista da história — para um feat em novo single de O Vira ou de Barco Negro para se tornar hino nacional do principado de Alfama.
Somos afortunados vampiros lusófonos a beber do mais puro e destilado sangue latino. Só Ney Matogrosso é capaz de fazer o mais conservador dos portugueses sonhar com a cidadania brasileira e sair do armário.