Será a acção climática no PRR em Portugal apenas faz-de-conta? Uma parte sim, diz auditor europeu
Em Portugal, que previa aplicar cerca de 9,1 mil milhões de euros na acção climática, seis projectos estiveram na mira do Tribunal de Contas Europeu que divulgou um relatório esta quarta-feira.
A dois anos da data-limite para os 27 países da União Europeia (UE) atingirem as metas de execução das reformas e investimentos do Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MRR), o Tribunal de Contas Europeu (TCE) alerta que a “bazuca” europeia pode não estar a cumprir um dos seus pilares fundamentais: a transição verde. Portugal é um dos países onde há projectos incluídos no pilar da transição ecológica que tiveram o seu potencial sobrevalorizado.
O princípio era simples: um terço das verbas do Mecanismo de Recuperação e Resiliência (que se desdobrou nos PRR de cada Estado-membro) deveria ser dedicado à acção climática. Os países entregaram os seus planos atendendo à exigência, e recentemente a Comissão Europeia anunciou mesmo que 42,5% dos fundos do MRR seriam entregues a projectos com impacto climático, num total de 275 mil milhões de euros – Portugal recebeu 9,1 mil milhões de euros “ecológicos”.
Mas o plano não tem corrido bem assim. Uma auditoria do Tribunal de Contas à forma como o mecanismo europeu está a ser executado, que incluiu Portugal na análise mais fina, concluiu que a metodologia para avaliar a contribuição climática dos projectos foi mal concebida, os fundos atribuídos neste pilar foram muitas vezes sobrestimados e os resultados em matéria de acção climática não têm sido reportados.
“Por outras palavras, não se conhece ao certo o volume total de fundos aplicados na acção climática”, lê-se no relatório publicado esta quarta-feira. “O contributo do MRR para a transição ecológica é pouco claro”, concluem os auditores.
Atribuição incorrecta
Para esta auditoria, o Tribunal de Contas Europeu olhou para o desenho do MRR, visitou quatro países – Croácia, Grécia, Eslováquia e Portugal – para analisar projectos do PRR que estavam classificados no pilar da transição climática, entrevistou governantes para esclarecer algumas dúvidas e chegou ao final do processo com demasiadas questões sem resposta.
Uma das dúvidas do TCE era se as medidas apresentadas eram tão ecológicas como se afirmava nas candidaturas. “[Em vários casos encontrados,] consideramos que o nível de relevância climática atribuído foi incorrecto”, resume Joëlle Elvinger, membro do TCE, em declarações numa conferência de imprensa na manhã desta quarta-feira.
Em causa estão os chamados “coeficientes climáticos” que são atribuídos aos projectos que têm um contributo para a acção climática que pode ser directo (coeficiente de 100%) ou indirecto (40%). Os auditores encontraram casos de má avaliação na atribuição destes coeficientes, resultando numa sobreestimativa da dimensão ecológica do Mecanismo de Recuperação e Resiliência.
A jurista Joëlle Elvinger faz notar que a metodologia criada pela Comissão Europeia para o acompanhamento da acção climática abria margem para esta “potencial sobreavaliação”. No total dos 27 países, pelas estimativas do TCE, 34,5 mil milhões de euros poderão ter sido classificados como contribuindo para objectivos climáticos de forma incorrecta.
E em Portugal?
Em Portugal, que previu aplicar cerca de 9,1 mil milhões de euros na acção climática, seis projectos estiveram na mira do TCE: o investimento em hidrogénio e outros gases renováveis, a expansão da rede de metro de Lisboa, a reforma do sistema de prevenção e combate de incêndio através do Programa Mais Floresta, o investimento na eficiência energética de edifícios residenciais, assim como projectos de bioeconomia e de descarbonização da indústria.
O investimento português no hidrogénio verde e outros gases renováveis está entre os exemplos de medidas que enfrentam atrasos que podem prejudicar a execução do projecto dentro do prazo de fim do MRR, agendado para Agosto de 2026. Em Portugal, à data da visita do tribunal (Julho de 2023), apenas um dos 23 projectos aprovados tinha recebido um adiantamento para iniciar os trabalhos, exemplifica o relatório.
Já a ampliação da rede de metro de Lisboa serviu de exemplo de uma “abordagem problemática”, quando se considerava o princípio de “não prejudicar significativamente”, que tem uma dimensão ambiental (ou seja, não apenas de redução das emissões de gases com efeito de estufa). Neste “grande investimento nos transportes públicos”, a avaliação do princípio de “não prejudicar significativamente” considerou que a medida “não tinha um impacto potencialmente negativo na atenuação das alterações climáticas, uma vez que lhe tinha sido atribuído um coeficiente de 100%”.
No entanto, descrevem os auditores, “é inevitável que o projecto emita uma quantidade significativa de gases com efeito de estufa durante a fase de construção”. Como a avaliação do princípio não foi aprofundada, alerta o TCE, “as autoridades nacionais não puderam verificar de que forma as emissões seriam compensadas pela poupança realizada quando o projecto estiver operacional”.
Clima ou ambiente?
Aliás, em geral, os auditores consideram que áreas como os transportes, as redes de electricidade ou disposições relacionadas com edifícios “não reflectem correctamente a contribuição que se espera que as medidas nestas áreas dêem para os objectivos climáticos da UE”, descreve Joëlle Elvinger.
Os auditores vêem nos números uma “sobrevalorização da contribuição do clima”, com valores que “podem não reflectir a contribuição climática”. “A avaliação do princípio de ‘não prejudicar significativamente’ foi demasiado suave”, considera a economista Antonella Stasia, auditora do TCE.
Em conferência de imprensa, a economista explicou que houve demasiada “generosidade” ao avaliar certos projectos como “climáticos”, uma categoria que deveria incluir apenas as medidas que façam parte efectivamente da transição ecológica. “Não é que não sejam ecológicos de todo, são apenas menos ecológicos do que o indicado”, resumiu, em conferência de imprensa.
Além disso, tanto a nível dos projectos como a nível da análise agregada da Comissão Europeia, não fica nada claro como é que os 42,5% de fundos dedicados à transição ecológica no MRR vão, de facto, contribuir para os objectivos assumidos na Lei Europeia do Clima para 2030 e 2050.
Comissão faz finca-pé
O TCE alerta, por fim, para o facto de que a proporção de fundos dedicados à acção climática só foi calculada na fase de planeamento, não estando previsto nenhum balanço sobre se a execução dos projectos mantém os objectivos climáticos, apesar de ser previsível que a aplicação dos fundos seja afectada por diversos factores.
“E a Comissão não vai voltar a verificar”, lamenta Antonella Stasia, dando conta da resposta da Comissão Europeia em que recusa a recomendação do TCE de fazer uma avaliação do impacto climático do resultado das medidas, escudando-se no facto de que isso só estava previsto para a fase de planeamento.
Assim, os Estados-membros não são – nem passarão a ser – obrigados a comunicar novas informações sobre as despesas efectivamente realizadas relacionadas com o clima no âmbito do MRR. “A Comissão só recolhe informações sobre os custos reais das medidas relacionadas com o clima no âmbito do quadro das obrigações verdes para a comunicação de informações aos investidores”, sublinhou a Comissão na resposta ao TCE.
Em suma: no final das contas, talvez nunca saibamos que percentagem das verbas do MRR terá de facto contribuído para o compromisso assumido pela UE de reduzir as suas emissões de gases com efeito de estufa.