Quando São Marino e Liechtenstein se sentam à mesa há assuntos urgentes para resolver

São Marino provou, 34 anos depois, que também sabe como se vence um jogo de futebol. Para quem veste aquela camisola é mais do que um jogo e eles celebraram como se fossem campeões do mundo.

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Jogadores de São Marino celebram na Liga das Nações FSGC
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Em São Marino, onze homens fãs de futeboladas já não aguentavam sofrer em silêncio – nem esses nem muitos outros que tentaram, durante 34 anos, vencer uma partida oficial de futebol pelo seu país. Nesta quinta-feira, deixaram o silêncio da derrota, gritaram e fizeram-no para todo o mundo ouvir: 210 jogos e 34 anos depois, São Marino provou que também sabe, afinal, como se vence um jogo de futebol.

Em Março, em apenas quatro dias, o PÚBLICO teve dois artigos sobre a selecção de futebol de São Marino – na altura, escrevemos sobre um primeiro confronto particular com St. Kitts & Nevis que poderia dar uma vitória histórica, e não deu, e um outro quatro dias depois, que também não deu.

Agora, estamos no terceiro artigo no mesmo ano – que talvez seja recorde, mas eles merecem essa honra, depois de celebrarem, em Abril, 20 anos sem ganharem qualquer jogo e 34 sem vencerem uma partida oficial. Nos Jogos sem Fronteiras, como no futebol, eles perdem. E grande parte das vezes trata-se de saber não se perdem o jogo, mas por quanto perdem. São, por isso, a última equipa do ranking FIFA, embora essa seja uma sina injusta. Já lá vamos.

Até esta quinta-feira, a única vitória que tinham era num particular precisamente frente ao Liechtenstein, porque, quando estas duas nações se sentam à mesa, há assuntos urgentes para resolver.

Festa rija

Não é fácil encontrar nível futebolístico mais baixo do que aquele, mas, quando os jogos são oficiais, esses fãs de futeboladas – e é pouco mais do que isso que eles são – tornam-se futebolistas. E para quem entra naquele relvado é mais do que um jogo de futebol. Ali, trata-se de honra. E de 90 minutos por um sorriso que, geralmente, não aparece até ao momento de trocarem de camisola com um craque qualquer que lhes apareceu à frente.

São Marino é a pior selecção de futebol do mundo, entrega-se de corpo e alma à arte de perder e assim parecia inevitável até esta quinta-feira. Pela primeira vez na história, a selecção masculina de futebol de São Marino venceu um jogo oficial, com o triunfo frente ao Liechtenstein na Liga das Nações.

O resultado, claro está, foi um singelo 1-0, com um golo às três pancadas, depois de patrocínio generoso dos defensores e guarda-redes adversários. E está bom assim, porque só para aí chegar já foi uma aventura e tanto, depois de 210 jogos de agonia.

914 pessoas assistiram ao vivo e viram a festa rija de quem celebrou como se fosse campeão do mundo. Para eles, era quase disso que se tratava.

Fãs de todo o mundo

Há coisas já ditas sobre a selecção e sobre uma falange de apoio estranhamente fanática. Eles não são muitos – e nem é garantido que estes apoiantes sejam sequer cidadãos de São Marino –, mas fazem ferver as redes sociais como poucas selecções conseguem.

Nesta quinta-feira, essas páginas nas redes sociais foram à loucura – a San Marino Fútbol tem mais de 300 mil seguidores, a San Marino fan account tem quase 200 mil, sendo que o país tem pouco mais de... 30 mil habitantes.

Apesar de não ser propriamente grande, a claque desta selecção merece ser falada. Chama-se Brigata mai 1 gioia [brigada sem nenhuma alegria] – um nome brilhante para um grupo de adeptos. Um grupo que viu ontem, pela primeira vez, uma vitória da sua selecção, porque se juntou muitos anos depois do tal triunfo no particular com o Liechtenstein, em 2004.

Mas eles divertem-se, vão acompanhando a equipa e vão brincando com a atracção de São Marino pela derrota. Um dia, quando empataram com a Estónia, decidiram fazer uma tarja a brincar com o nome da claque, a dizer “brigata mezza gioia” [brigada de meia alegria].

Estão a melhorar?

Num dos textos que publicámos em Março sobre o duplo confronto com St. Kitts & Nevis escrevemos algo que merece ser corrigido. “A equipa tem conseguido marcar mais golos do que é habitual e uma vitória não seria apenas fruto do acaso, mas sim passível de ser (ingenuamente) enquadrada numa melhoria da equipa”, pode ler-se.

Talvez “ingenuamente” esteja a mais naquela frase que se referia a quatro partidas consecutivas a marcar, três delas oficiais. São Marino não só anda a marcar mais golos como até já vence – e em jogos oficiais.

Os menos românticos dirão que ganhar ao Liechtenstein, como ganhar a Gibraltar, não garante o que quer que seja para o futuro do futebol de São Marino. E provavelmente têm razão. Mas a melhoria da equipa, pelo menos a nível ofensivo, é evidente.

E só os preceitos injustos do ranking FIFA obrigam São Marino a estar no último lugar do ranking, entre 210 países. A equipa do enclave italiano não é pior do que equipas fracas de África, Ásia, América ou Oceânia, mas, defrontando rivais europeus mais dotados, raramente faz pontos. Uma adequação dos pontos ganhos no ranking em função do valor do adversário seria mais justa, embora algo complexa.

Sensoli, o herói

A esse respeito há duas coisas possíveis de prever. A primeira é que em Outubro e Novembro há dois jogos com Gibraltar e um no Liechtenstein, partidas que poderão garantir a São Marino, embalado pela melhoria recente, a subida à divisão acima da Liga das Nações, dado que só compete com estas duas selecções por uma vaga na Liga C.

A segunda é que, se isso acontecer, é provável que passe o mesmo que passou Gibraltar na última edição: vão sofrer golos, perder jogos e regressar à Liga D para a edição que se segue.

Por fim, também há coisas a dizer sobre o herói desta quinta-feira. Aos 19 anos, Nicko Sensoli foi o autor do golo que deu a primeira alegria oficial a São Marino. Estamos a falar de um rapaz que só precisou de quatro jogos pelo seu país para dar a maior alegria da história.

E há dois pormenores interessantes. Um é que Sensoli se estreou pela selecção na tal dupla jornada de Março frente a St. Kitts & Nevis, que prometia ser de alegria, mas acabou vazia de festejos. O outro é que quando São Marino venceu o Liechtenstein, em 2004, ele nem era nascido. Até dar, nesta quinta-feira, o triunfo ao seu país, Sensoli nunca tinha visto a equipa vencer.

Os jogadores de São Marino levam mais de três décadas a tirarem fotografias e trocarem camisolas com estrelas mundiais, depois de 90 minutos de agonia. Talvez um dia destes haja um craque a querer a camisola de Sensoli. Será provável? Não. Mas seria giro de ver.

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