Inquérito ao incêndio da Torre Grenfell aponta “décadas de falhanços” do Governo, das empresas e do sector da construção

Relatório sobre incêndio de 2017 num edifício habitacional, em Londres, que matou 72 pessoas, responsabiliza autoridades, sublinha “desonestidade” e “incompetência” de várias entidades.

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A maior parte da responsabilidade pela catástrofe é atribuída às empresas envolvidas na manutenção e remodelação da torre, com material altamente inflamável Stringer / REUTERS
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Um inquérito público sobre o incêndio devastador de 2017 na Torre Grenfell, em Londres, publicado esta quarta-feira, atribuiu a tragédia a falhas do Governo britânico, do sector da construção civil e, sobretudo, das empresas envolvidas na instalação de revestimentos inflamáveis no exterior do edifício.

Setenta e duas pessoas morreram quando o fogo destruiu o edifício de habitação social de 23 andares numa das zonas mais ricas no Oeste de Londres durante a madrugada de 14 de Junho de 2017. Foi o incêndio mais mortífero num edifício residencial no Reino Unido desde a II Guerra Mundial.

Nas conclusões de um inquérito cuja publicação era há muito aguardada, a maior parte da responsabilidade pela catástrofe é atribuída às empresas envolvidas na manutenção e remodelação da torre de apartamentos, às falhas das autoridades autárquicas e nacionais, bem como às empresas que comercializaram “desonestamente” materiais de revestimento combustíveis como sendo seguros.

Entre os visados pelas críticas estão o Governo, a autarquia de Kensington e Chelsea, os reguladores do sector, empresas e indivíduos específicos, arquitectos e a até a unidade de bombeiros local, impreparada, devido a anos de inércia, para lidar com incêndios em edifícios altos.

“O incêndio na Torre Grenfell foi o culminar de décadas de falhanços do Governo central e de outros organismos em posições de responsabilidade na indústria da construção”, lê-se no relatório do inquérito, que tem quase 1700 páginas.

Em declarações aos deputados, nesta quarta-feira, o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, informou que as empresas citadas no relatório e consideradas irresponsáveis serão proibidas de se candidatar a contratos públicos.

Nos anos que se seguiram ao incêndio, os sobreviventes e familiares dos que morreram têm exigido que os responsáveis sejam levados à Justiça e sejam acusados criminalmente. Mas, embora a polícia britânica tenha informado que 58 pessoas e 19 empresas e organizações estão a ser investigadas, os processos judiciais – incluindo por homicídio involuntário e fraude – arrastam-se há anos devido à complexidade do caso e à necessidade de se ter em conta as conclusões deste inquérito.

“Não consigo imaginar o impacto que uma investigação policial tão longa possa ter sobre os familiares e sobreviventes, mas temos uma oportunidade de fazer uma investigação correcta”, explicou o comissário-adjunto Stuart Cundy.

Incêndio incontrolável

Um relatório de 2019 elaborado pela equipa que levou a cabo este inquérito e que se centrou nos acontecimentos da noite da tragédia, concluiu que o incêndio tinha sido provocado por uma avaria eléctrica num frigorífico de um apartamento do quarto andar.

As chamas propagaram-se de forma incontrolável, principalmente porque a torre tinha sido coberta, durante uma remodelação em 2016, com revestimentos – painéis exteriores concebidos para melhorar o aspecto e acrescentar isolamento – feitos de material compósito de alumínio inflamável que actuou como fonte de combustível.

Os testemunhos angustiantes, incluindo os dos que morreram enquanto esperavam pelas equipas de salvamento e que, seguindo as orientações das autoridades, não abandonaram o edifício, provocaram fúria e uma enorme discussão a nível nacional sobre as normas de construção e o tratamento que é dado às comunidades de rendimentos mais baixos.

Liderado pelo juiz reformado Martin Moore-Bick, o inquérito identificou uma série de falhas; não tinham sido aprendidas lições de incêndios anteriores em edifícios altos e os sistemas de teste eram inadequados.

A culpa mais evidente foi atribuída às pessoas envolvidas na renovação da torre com o revestimento inflamável. Segundo o inquérito, a empresa de arquitectura Studio E, o empreiteiro principal Rydon e o sub-empreiteiro Harley tiveram uma responsabilidade considerável na tragédia.

Os inspectores de segurança contra incêndios Exova foram também responsabilizados pelo facto de o edifício ter sido deixado “em condições perigosas após a conclusão da renovação”.

O Governo britânico, liderado pelo conservador David Cameron entre 2010 e 2016 – em coligação com os Liberais Democratas nos primeiros cinco anos – e por Theresa May nos anos seguintes, é criticado pelo facto de ter reduzido a regulamentação sobre este tipo de edifícios, levando a que fossem “ignoradas, atrasadas e desconsideradas” várias questões de segurança.

Manipulação deliberada

O council de Kensington e Chelsea como a Tenant Management Organisation (TMO), que geria o parque habitacional da autarquia local, também foram duramente criticados.

Nos anos que antecederam o incêndio, mostraram-se indiferentes às normas de segurança contra incêndios e a TMO, cuja relação difícil com alguns moradores teria criado uma “atmosfera tóxica”, tinha-se concentrado indevidamente na redução de custos.

Embora a comunidade local e os grupos de voluntários tenham sido elogiados pelo apoio prestado, o município foi também criticado pela sua resposta lenta, confusa e “totalmente inadequada” ao incidente.

Foram igualmente criticadas as empresas que fabricaram e venderam o revestimento ou a espuma de isolamento: Celotex, Kingspan e Arconic Architectural Products, a filial francesa da empresa americana Arconic. O inquérito concluiu mesmo que houve uma “desonestidade sistemática” da parte destas empresas.

“Envolveram-se em estratégias deliberadas e sustentadas para manipular os processos de ensaio, para deturpar os dados testados e para induzir o mercado em erro”, sublinha o relatório.

A questão do revestimento exterior suscitou preocupações em toda a Europa, onde se registaram incêndios semelhantes em blocos de apartamentos, como na cidade espanhola de Valência, em Fevereiro desde ano, ou em Itália, em 2021.

No Reino Unido, os números do Governo até Julho revelaram que 3.280 edifícios com 11 metros ou mais de altura ainda tinham revestimentos inseguros, com trabalhos de reparação ainda por iniciar em mais de dois terços deles.