Moscovo terá recorrido a comentadores norte-americanos para difundir propaganda russa

Televisão russa terá financiado uma empresa nos EUA para, através de um conjunto de comentadores de direita, mas sem o conhecimento destes, influenciar a opinião pública norte-americana.

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O Presidente russo, Vladimir Putin. A Rússia é novamente acusada de executar uma operação de influência junto da opinião pública dos EUA Alexander Kazakov /REUTERS
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O Departamento de Justiça dos Estados Unidos acusou nesta quarta-feira dois funcionários do canal televisivo russo RT, controlado pelo Kremlin, de financiar e dirigir uma empresa norte-americana para "criar e distribuir conteúdo para o público norte-americano com mensagens ocultas do Governo russo", como descreve o procurador-geral norte-americano Merrick Garland, para "manipular ilegalmente a opinião pública norte-americana ao semear discórdia e divisão".

A RT, antiga Russia Today, é acusada de ter investido dez milhões de dólares numa empresa de criação de conteúdos com sede no estado norte-americano do Tennessee, que contaria com um conjunto de influenciadores, ou de rostos conhecidos dos utilizadores de redes sociais norte-americanos, para protagonizar vídeos alinhados com objectivos da propaganda russa. Um dos comentadores receberia 100 mil dólares por cada vídeo produzido, enquanto outro seria remunerado em 400 mil dólares por mês, refere a acusação.

Segundo o Departamento de Justiça, os dois cidadãos russos, Kostiantyn Kalashnikov e Elena Afanasyeva, que não terão revelado aos comentadores que trabalhavam para o Governo de Moscovo, teriam controlo editorial e ditavam a política de contratações da empresa em causa. Apresentavam-se sobre identidades falsas (Afanasyeva seria simultaneamente "Helena Shudra" e "Victoria Pesti") e contariam com a cumplicidade de dois indivíduos, fundadores da empresa, que o Departamento de Juestiça não nomeia para já mas que disse serem cidadãos estrangeiros a residir nos EUA, e que também já tinham colaborado individualmente com a RT. Quando questionados sobre o financiamento da empresa, os responsáveis diziam aos comentadores que os fundos provinham de um investidor chamado "Eduard Grigoriann", que a justiça norte-americana conclui não existir.

O jornal The Tennessean, a CNN e o Washington Post indicam que a empresa financiada pela RT terá sido a Tenet Media, e um excerto de uma apresentação da companhia que é citado no despacho da acusação surge ipsis verbis no seu site corporativo. Entre os comentadores e influenciadores associados à companhia estão Dave Rubin, Tim Pool, Benny Johnson e Laura Southern — todos ligados à direita conservadora norte-americana. Juntos somam milhões de seguidores em plataformas como o YouTube ou o X (antigo Twitter).

O Departamento de Estado afirma, contudo, que os comentadores não são alvo de suspeita e que não saberiam que estariam a receber ordens ou sugestões oriundas do regime russo. "Estamos preocupados com as alegações do despacho de hoje, que tornam claro que eu e outros influenciadores somos vítimas deste alegado esquema", escreveu Benny Johnson na rede social X. Tim Pool, que se inclui entre as "vítimas", nega ter cedido qualquer controlo editorial sobre os seus conteúdos. "Putin é um traste", acrescentou, numa declaração partilhada no X.

Imigração e Ucrânia entre os temas explorados

A campanha de difusão de conteúdos financiada por Kalashnikov e Afanasyeva terá tido início em Novembro de 2023 e abrangido várias plataformas e redes sociais, incluindo o TikTok, o Instagram, o X ou o YouTube. O Departamento de Justiça contabiliza que foram publicados perto de 2000 vídeos, muitos com comentários sobre temas de debate nos Estados Unidos, como imigração, inflação e outros assuntos relacionados com a política interna e externa norte-americana.

"Embora as opiniões expressas nos vídeos não sejam uniformes, a maioria está direccionada para os objectivos declarados publicamente pelo Governo da Rússia e pela RT — promover divisões internas nos EUA", lê-se na acusação da justiça norte-americana.

Um dos exemplos referidos pela investigação é acusação de que a Ucrânia e os Estados Unidos terão estado por trás do atentado terrorista de 22 de Março numa sala de espectáculos em Moscovo. O ataque foi reivindicado por uma facção do Daesh. No entanto, Afanasyeva terá instruído a empresa norte-americana a explorar nos seus vídeos aquela tese conspirativa, que também estava a ser difundida pela televisão russa.

Kalashnikov, de 31 anos, e Afanasyeva, de 27 anos, são agora acusados de violar o Foreign Agents Registration Act (em português, lei de registo de agentes estrangeiros), que exige o registo junto do Governo norte-americano de indivíduos ou entidades ao serviço de campanhas de propaganda de organizações ou governos estrangeiros. São também acusados de branqueamento de capitais, uma vez que a empresa do Tennessee era financiada através de uma rede de entidades de fachada sediadas em países como a República Checa, a Turquia ou a Maurícia.

Os dois suspeitos, que estarão na Rússia, são agora procurados pelas autoridades norte-americanas. A estação de televisão russa visada nega as acusações feitas esta quarta-feira.

Sites de notícias falsas bloqueados

Em paralelo, "o Departamento de Justiça arrestou 32 endereços da Internet usados pelo Governo russo e por intervenientes patrocinados pelo Estado russo (...) numa campanha clandestina para interferir nas eleições e influenciar os seus resultados", afirmou o procurador-geral norte-americano na conferência de imprensa desta quarta-feira. Os endereços imitariam sites noticiosos verdadeiros, como a Fox News ou o Washington Post, mas difundiam histórias falsas relativas a assuntos como a guerra da Ucrânia ou a segurança da fronteira Sul dos Estados Unidos.

A distribuição destes conteúdos também seria feita com recurso a influenciadores, bem como a anúncios digitais e a perfis falsos nas redes sociais que se apresentavam como cidadãos comuns dos Estados Unidos.

Há vários meses que os serviços secretos e de segurança dos EUA emitem avisos sobre tentativas de interferência russa nas presidenciais deste ano, bem como esforços para reduzir o apoio da opinião pública à ajuda financeira norte-americana à Ucrânia, invadida pela Rússia em 2022.

"Estamos a ver mais e mais. Está a acelerar cada vez mais, e portanto é uma ameaça maior do que alguma vez foi", alertou Merrick Garland.

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