Pela contenção urbana

A crise na habitação pede soluções rápidas, mas tentar resolvê-la através do crescimento desequilibrado das cidades é como libertar cobras para tratar uma praga de ratos.

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Megafone P3: Pela conteção urbana Manuel Roberto
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A anunciada alteração do Governo ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), que permitirá o uso de solos rústicos para certas soluções de habitação, mostra a falta de visão sistémica sobre o problema complexo que envolve o espaço urbano. Esta alteração vem agravar a tendência de crescimento desequilibrado do território, aprofundando os seus desafios ambientais, económicos e sociais.

Antes de mais, é preciso ter em conta que o problema actual de habitação não resulta propriamente da falta de parque habitacional – segundo o Contador, em 2021 existiam 485 461 alojamentos em condições de ser habitados – nem de espaço edificável. A dificuldade de acesso à habitação prende-se com dinâmicas de mercado e de uma particular pressão nos centros urbanos por falta de um crescimento mais equilibrado do restante espaço edificável.

A medida apresentada pelo Governo vai, pelo contrário, agudizar mais o problema de crescimento não-qualificado das nossas periferias e dos espaços entre cidades. Ao permitir a construção em solo rústico, abre-se a porta à expansão urbana extensiva (urban sprawl), caracterizada por ser monofuncional e contrária a um território eficiente, denso e de usos diversificados. Um promotor imobiliário de habitações a custos controlados não terá o mínimo incentivo, nem capacidade, para promover a diversidade de usos nestas novas localizações, para além de lhe serem indiferentes as questões de justiça social e sustentabilidade económica.

Este tipo de ocupação afecta a justiça social uma vez que relegamos certas classes sociais a zonas da cidade não-qualificadas, perpetuando as desigualdades entre grupos sociais. Trata-se de uma solução já praticada no passado em muitas cidades portuguesas, que resultou em áreas marginais com graves problemas de integração social. Pergunto, em que zonas da cidade estarão as melhores escolas, os hospitais ou os espaços públicos qualificados? Não serão, certamente, nos bairros de rendimento acessível. A economia familiar também é afectada porque quem viver nestas novas localizações terá encargos acrescidos de deslocação para aceder a oportunidades de emprego, comércio ou entretenimento. De que serve uma habitação para arrendamento acessível, se a pessoa vai ter de fazer 30 quilómetros diários para o seu emprego?

Que se note, diferentes documentos estratégicos e legislativos vinham a fazer o caminho a favor da cidade compacta e da sua diversificação de usos. O Programa Nacional das Políticas de Ordenamento do Território (PNPOT) de 2019 promovia a contenção urbana como prática para a gestão do desenvolvimento urbano sustentável. Também as alterações feitas em 2014 e 2015 no RJIGT e noutros decretos regulamentares representou um passo no caminho de um crescimento urbano saudável. A medida agora apresentada representa um retrocesso nesse caminho.

Portugal estreou-se tarde nas políticas de ordenamento do território, apenas nos anos 1990, ao passo que países que adoptaram políticas bem mais cedo conseguiram garantir a contenção urbana. Nos Países Baixos, duas em cada três pessoas vive a menos de três quilómetros de uma estação de comboio, o que facilita a promoção do transporte público. Na Dinamarca, o ‘Fingerplan’ de Copenhaga, dos anos 1940, permitiu um crescimento da cidade em torno de cinco linhas de comboio e uma melhor distribuição de usos. Não é coincidência serem dois países onde o território é eficiente e os transportes mais sustentáveis. Planear uma cidade demora tempo e é um processo sistemático.

É verdade que a crise na habitação pede soluções rápidas, mas resolvê-la através do crescimento desequilibrado das cidades é como libertar cobras para tratar uma praga de ratos. A curto prazo é necessário promover a construção de habitação sim, mas a construção em locais já integrados na cidade apresenta maiores benefícios sociais e mesmo maior retorno financeiro (e.g. eficiência do uso da infra-estrutura pública). Já a longo prazo, é necessário tirar a pressão dos principais centros urbanos, promovendo diferentes usos nas periferias, deslocando para aí oportunidades de emprego, comércio e entretenimento e tornando-os atractivos para diferentes grupos sociais.

A solução para o problema da habitação em Portugal pede um olhar sistémico. A medida apresentada de reformulação do RJIGT representa um retrocesso no caminho do ordenamento do território nacional e uma contradição das boas práticas internacionais para o espaço urbano.

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