Sevilha nunca arrefece

A Andaluzia retém o calor nas pedras dos passeios, nas paredes das casas, no tampo das mesas das esplanadas, na gordura dos copos, na pele dos braços, nas axilas que atam os braços ao corpo.

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"A mulher na fila à minha frente usa um vermelho vivo e sorri-me como quem beija" Ilustração: Rita Lagarto
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De todas as mortes possíveis, a que sempre temi mais é a que resulta da combustão espontânea. Recordo-me de um episódio da série X-Files, no qual os personagens morriam subitamente dessa estranha causa, enquanto eu assistia assombrada, com as pernas suadas entre as almofadas do sofá e a agitação dos meus 13 anos, esmagada pela possibilidade daquela morte incandescente a pairar entre a verdade da ficção. Semi-apaixonada pelo agente secreto Mulder, semi-atraída pela agente secreta Scully… Secretamente.

Naquela série o Mulder e a Scully nunca se beijavam, e portanto a temperatura da televisão vibrava sempre sem nunca arrefecer, ficando até hoje suspensos nesse quase-romance, tal como a minha convicção quase-verdadeira de que é possível alguém morrer porque retém o calor lá dentro. Como um vulcão numa erupção explosiva-catastrófica, em que a lava é quente e tão densa que nunca chega a derramar.

Sevilha no Verão nunca arrefece. A Andaluzia retém o calor nas pedras dos passeios, nas paredes das casas, no alcatrão, no tampo das mesas das esplanadas, na gordura dos copos, na pele dos braços, nas axilas poderosas que atam os braços ao corpo e que não deixam que o peito fique nunca sem âncora. Nunca. Imagine-se um peito sem braços... Um barco sem âncora para poder agarrar o cais, para poder atracar. Um barco à deriva. Um peito à deriva.

“A onda de calor invadiu a Europa e as temperaturas vão subir até aos 47 graus na Andaluzia.” O anúncio no rádio chega tarde demais, quando já estou a atravessar a fronteira. É o aquecimento global. O esquecimento global. O esquecimento é o que transforma o “quase” em “nunca”. E nunca se deve viajar para fugir a um desgosto de amor... É uma recomendação. Da música pop, do IPMA, da Proteção Civil… Quanto mais se afasta o corpo em latitude mais se sente o peso da pressão atmosférica sobre a superfície. Perdem-se os dados de referência… Os pontos cardeais atravessam os pontos cardíacos. O corpo perde-se. O peito à deriva sem ter onde atracar…

“Perder la partida / Beber tu saliva / Jugarme la vida / Buscarme la ruina…”

A partir da fronteira só vale música hispânica — é uma regra de geografia radiofónica, de Espanha para dentro, cantar, é em castelhano! A entrada em Sevilha é dolorosa: são duas da tarde e o piso liberta o vapor de uma pré-erupção, a superfície de alcatrão é uma frigideira pronta a fritar, como se o subsolo se preparasse para explodir.

Arrasto o trólei. Arrasto os pés. As minhas coxas rebolam como melancias deixadas ao calor. O suor escorrega pelas minhas pernas, as solas das sandálias derretem debaixo dos meus calcanhares, se continuar na rua corro o risco de derreter e ficar fundida na calçada da carretera, para sempre a ser pisada por solas de pés de turistas asiáticos com sacos de souvenirs nas mãos, cascos de cavalo e rodas de coches turísticos.

As minhas amígdalas incham, protestam uma inflamação, atiçadas pelos ares condicionados com temperaturas do Ártico nos espaços interiores, e do deserto no exterior, o meu sistema imunitário não compreende se está nos polares ou nas balneares. Pior do que um coração combalido é a recobro com uma constipação de verão. Não haverá portanto cerveza para ninguém! Só cocktail de Ibuprofeno.

Entro num hotel, um Oásis de salvamento para uma naufraga no deserto. Procuro furar até à receção entre o reboliço de turistas estridentes com a pele às riscas cor de rosa tatuadas pelo sol andaluz, que entopem o átrio, enquanto tiram selfies junto às prateleiras com atrações de Sevilha em miniatura, como aperitivo das que tirarão mais tarde, nos mesmos lugares, mas em grande.

“Desculpia não hay ninguién aqui???”, lanço-me desesperada ao balcão, simulando um castelhano de ficção, na espectativa de que a vizinhança fonética me dê prioridade no atendimento, enquanto uma loura de braços rosados como jamón ibérico e dois metros de altura, provavelmente proveniente de uma cidade alemã onde os palitos se usam para espetar pickles em vez de palitar os dentes, me retorna um olhar ameaçador.

Através da janela vejo a piscina do hotel: uma canja de cloro e creme solar, com dezenas de veraneantes com queimaduras que eu diria de terceiro grau a boiar colados uns aos outros. Dante não teria imaginação para descrever um Inferno assim. Dispo o biquíni.

Recebo a chave e enfio-me no quarto. Mergulho no colchão irrepreensível de gama alta, propaganda de uma siesta de qualidade premium, enquanto sou invadida por um estado febril de tintas que se diluem e me tingem os pensamentos, um sonho que se repete, uma e outra vez: uma mancha preta sobre a minha cama, um buraco para o centro da terra, o olho do vulcão, sem uma palavra lá dentro, só a tua ausência, sem me dar tempo para a despedida. O mesmo sonho, o mesmo episódio, mas com vários finais, como uma tela que regenera, a tua saída replicada vezes sem conta, enquanto eu dormia — a saída que eu não poderia ter visto, porque estava de olhos fechados quando aconteceu.

Ao final da tarde, decido sair pela fresca: o termómetro faz a amabilidade de marcar 46 graus às sete da tarde. O sol assoma ainda redondo no horizonte branco.

Sevilha nunca arrefece. Sigo em direção à Praça de Espanha. A Praça de Espanha numa cidade espanhola. Redundante. Mais cores. Na praça, os casais abraçados junto ao lago somam fotografias com sorrisos contabilizados na bolsa de valores do Instagram. Olho-me num reflexo. Lá estou eu: dentro de mim. Somos sempre redundantes. Somos nós próprios até à exaustão.

Oiço um estouro. Uma explosão no eco do ar da tarde. As solas dos sapatos de uma bailarina de flamenco estoiram uma saraivada de tiros debaixo das arcadas. Os turistas aproximam-se, como pombos a quem se atirou milho. Um homem canta enquanto mira a bailarina. As palmas das mãos batem firmes comandando a passada. Um guitarrista dedilha as cordas da guitarra em faíscas frenéticas. Os tiros acertam-me em cheio no peito. As membranas das minhas amígdalas sacodem com o rugido das solas no chão. A voz do homem vibra como o uivo de um animal ferido sob o sol, como magma que verte do tórax.

“Água!”, grita! Grita “Água!”, como quem grita Fogo! Bebo a voz, fico ébria, a visão turva. O meu sangue corre como um rio fluido que me empurra para desaguar nas calles do centro e eu deixo-me levar. Caminho sem direção. Como uma hiena perdida. Cheia de secura. Sento-me ao balcão da Bodeguita Romero, e assisto ao bailado de mãos, pratos, molhos e temperos brilhantes que dançam entre as bocas: um ritual pagão. Abraço o culto, dispenso a receita clínica e bebo duas cervejas, três, quatro.

A noite cai e abafa as estrelas sob um manto pesado e quente. Os homens que vou amar desfilam na ponte. Irreais. Imaginários. O mecânico de tatuagens no pescoço e cicatrizes de um passado obscuro… Um talhante que toca precursão em tambores com pele curtida e esticada... Um filósofo ardente que nunca vai aterrar das suas teorias abstratas, inúteis …

“Llevo tu boca pegada a mis pupilas… Llevo tu boca pegada a mil sabores…”

Sinto o meu torso suado, pronto para se enroscar numa axila, para marear sem âncora, só bote, no sangue que agora escalda.

Água! Um concerto a céu aberto começa na Plaza del Altozano. No palco a cantora canta com a força de quem consegue parir mil luas. Levanto os braços. Estou a suar em bica. Baixo os braços. As minhas axilas têm uma fraquíssima autoestima.

A mulher na fila à minha frente usa um vermelho vivo e sorri-me como quem beija, sem freios. "Está tan quente" respondo ao gesto caloroso dela com o meu espanhol desidratado. “Água!”, vociferam as pessoas do público como uma oração. Estamos numa capela a céu aberto. Numa mesquita num templo universal. A orar a Baco, a Afrodite numa reza que nunca termina, sede que nunca cessa. Água! À minha volta as pessoas dançam imunes ao calor, batem com os calcanhares contra o chão, como se fossem os cascos de um touro. As palmas das mãos que convocam o centro da terra em fogo.

O flamenco! Água… Sou ateia e é esta a minha religião.

“Llevo tu boca impregnada en mis retinas / Veo tu boca en la boca de quién me mira…”

O calor aperta. É meia-noite e estão 39 graus com 70% de humidade. Sinto uma quebra de tensão. Deve estar baixíssima. Devia medir numa farmácia. Água! A mulher de vermelho roda a anca e percorre com o olhar um homem do outro lado do palco. Tesão… Não se mede, ainda não se vendem nas máquinas. O marido não gosta do gesto. Os amores latinos. Os homens latinos. Ele agarra-lhe o pulso com força. Ela sacode-se. Passion? Eu alarmo-me, penso se devia intervir na tela… A música do palco atinge o clímax, no refrão. Passion. Ela solta-se. Encara o marido, gira a anca. Sorri como quem varre nódoas de sangue com água de um alguidar. Sinto que estou prestes a sucumbir ao calor. Afasto-me e vacilo entre a praça nauseada pelo abafo. Num pré-desmaio, com o medo que sempre me acompanha de cair apagada para dentro de mim completamente.

Alguém me olha através do reflexo de uma montra apagada. É o teu rosto. Está colado ao pescoço de um homem com um corpo diferente do teu. Entro num bar. A batida mecânica e incolor contrapõe o batimento primitivo e pulsante dos bailarinos da praça. Aqui tudo é vítreo e a embriaguez é plana, sem sobras, nem saias rodadas. Os olhos dos noctívagos varrem os corpos como num takeaway de comida fast. Tudo é concreto e vazio. Não há espaço nem para um laço imaginado.

O homem segue-me. Olha para mim com os seus olhos fulminantes através da máscara que é a tua cara. Aproxima-se. Envolve-me num abraço. A paixão dos latinos. Dois braços apertam-me o ventre, duas âncoras forçadas, um resgate em alto mar, por um navio fantasma. Dança comigo. Envolve-me. Não larga a tua máscara. Cola a boca no meu pescoço. Arde. Queima. O metal de uma âncora que esteve ao sol. Lança-a para dentro dos meus lábios. Sabe a ferrugem. As minhas amígdalas em erupção. Sacudo-me, sufocada. Solto-me. Aproveito uma onda e flutuo dali para fora. Corro na direção do hotel. Na cidade vazia. Concreta e vazia. Tiro os sapatos. Caminho descalça na beira da Praça de Espanha.

Amanhã logo cedo, parto. Há o sério perigo de morrer por combustão espontânea. Restaria só o peito detonador da explosão sem mais nada à volta.

Um peito à deriva.

38 graus. Marca um termómetro luminoso. São três da manhã.

Sevilha nunca arrefece.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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