As batalhas da domesticidade

A voltar de férias? Prepare-se para o regresso à eterna trouxe-mouxe da casa. E, como escreve Miguel Calado Lopes, para as Batalhas: a da Arrumação, a do Pó, a da Roupa Suja...

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A recidiva síndrome pós-traumática da visão do frigorífico quase vazio cura-se com um carrinho de supermercado Andre Rodrigues
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A domesticidade caseira tem o vagar do começo e a pressa do final. Como soldado numa trincheira, adio o começo da batalha pela minha sobrevivência quotidiana e apresso-me, quase em vão, a vencê-la seja como for. A inglória luta diária numa guerra sem fim acumula despojos efémeros - a comida feita, a roupa e a loiça lavadas e arrumadas, o chão aspirado e a esfregona passada, feita a cama por fazer, enfim, a casa arrumada e limpa para ser desarrumada e suja no momento seguinte.

Despojos fragmentários arremessados do outro lado da trincheira, tristemente submissos à ordem superior do que tem de ser tem muita força. Resisto quanto posso, mas não tenho ajudante de campo que cumpra, o melhor que pode e sabe, o rosário tarefeiro do caderno de encargos. Peço tréguas todas as manhãs e noites mas a domesticidade caseira é implacável e nunca mas nunca concede. Esforço-me por ser um valente soldado de esfregão numa mão apontado ao enxaguamento da bancada da cozinha e, na outra, os produtos brancos da limpeza. Atingido o objetivo, arrumo-os em formatura de combate militar no armário inferior, cemitério desarrumado e ressuscitável, pleno de aditivos prontos a entrar em ação a qualquer hora.

Sinto-me comandante que perpetua a guerra para alcançar a paz mas não passo de carne para um canhão constantemente municiado com balas de limpeza, manutenção, gestão alimentar e de organização, devidamente estriadas e calibradas, apontadas à minha falta de paciência. Sou um soldado raso que nunca passou, nem passará, disso. Um soldado que não sabe que vai ser sempre ferido nas suas expectativas de progressão na carreira. Um soldado sem direito a baixa, existencial, civil, portanto, que lhe permita ser o que gostaria de ser mesmo que fosse numa mansão com mordomo, governanta, chef, empregadas fardadas a rigor, chauffeur de casaco assertoado com botões dourados e boné de pala rígida, uma chaise longue da Cassini com um candeeiro Art Déco de pé alto na biblioteca, sem faltar, noblesse oblige, a mesinha de apoio nórdica para o cocktail de Martini, shaken, not stirred. Outros sofás made in Ikea na sala de visitas com ecrã gigante ao gosto dos visitantes.

Eis as frentes de batalhas caseiras para as quais sou atirado por ordens superiores, vá lá saber-se por que decreto de direito comum, à minha vontade que desejaria soberana.

A Batalha da Arrumação coloca uma grande questão filosófica – nunca se consegue saber se o tempo gasto a arrumar as coisas é inferior ou superior ao tempo gasto a procurar as coisas desarrumadas. Assim sendo, deixo-as correr por onde andam e ficam até que o imperativo da confusão obrigue a chegar a uma conclusão sem mais debates.

A Batalha do Pó é praticamente invisível. Nem as terríveis armas do pano húmido, do espanador e do aspirador conseguem vencê-la de uma vez por todas. São aos milhares os nanoparaquedistas em constante descida voada aleatoriamente. É necessário passar o dedo indicador em superfícies planas e ver nelas o rasto identificador da aterragem para começar a pensar na resposta adequada. O alerta vermelho é entoado com estridência pela corneta dos espirros. Movidos a correntes de ar, os blindados de cotão possuem um aerodinamismo próprio de um design auto-emaranhado de acumulação crescente. As características evolutivas do cotão complicam muito a situação no terreno tanto mais que são dotados de uma camuflagem proporcionada por um sistema milenar de translucidez camaleónica, aliás de uma modernidade sempre presente, que lhe permite disfarçar-se debaixo das camas, sofás e cantos da casa.

A Batalha da Roupa Suja é outra loiça. As frentes de combate são variadas e obedecem, não a meias medidas, mas a medidas inequívocas de persuasão psicológica assentes em tempo, temperatura e especificidade do material a enfiar a trouxe-mouxe no cilindro das rotações, contra rotações e centrifugações – branco, desportivamente sujo, algodão, lã, sintéticos, rápido, delicados, capas de edredão, etc. Saco da arma secreta, a do tudo ao molho e fé em Deus, e primo o botão “misto”. Entre desbotamentos, encolhimentos e outros sofrimentos, alguma roupa vai safar-se. Uma hora depois confirmo a justeza da decisão estratégica. Até à data tenho saído vencedor com um ou outro dissabor. A interconectada Batalha dos Lençóis tem muito que se lhe diga… ou nada conforme as circunstâncias – passam-se coisas, os intervenientes passam-se por vezes mas nenhum dos lençóis sai convenientemente passado. Estender a roupa surge depois como uma trégua, não como uma rendição do sujo ao lavado.

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O autor de baixa existencial após as suas batalhas domésticas dr

A Batalha do Destinar o Jantar não obedece a nenhuma regra digna de nome, daí ser um constante quebra-cabeças dada a desigualdade das forças em presença. De um lado, eu, na qualidade de superior interessado na resolução da equação, do outro, a complicada variedade do contingente a mobilizar diariamente. É por este motivo que convoco logo pela manhã um Conselho de Guerra e convoco a presença do Grande Chef da Cozinha de Restos (moi-même). Estabeleço prioridades na guia de marcha: 1) balanço de stock de conservas e outros perecíveis quando chegar a vez deles, sabe-se lá quando e como; 2) inspeção dos efetivos fora de prazo mas ainda próprios para entrar em rápida ação de consumo imediato; 3) balanço dos efetivos com o prazo a terminar; 4) balanço dos prisioneiros há mais tempo em tupperwares, especialmente a sopa em vias de azedume; 5) corte das partes podres das frutas; 6) raspagem das pintas de bolor que começam a aparecer nos queijos; 7) alinhar a comida do cão numa única camarata para evitar anteriores ingestões indigestas. Só em desespero de causa diário se pode recorrer aos reservistas aquartelados no congelador.

A recidiva síndrome pós-traumática da visão do frigorífico quase vazio cura-se com um carrinho de supermercado para transporte de ajuda externa por confecionar ou confecionada afanosamente em linhas de montagem de ingredientes, condimentos e aditivos preservativos. O grande chef recusa-se terminantemente a participar na Batalha da Lavagem da Alface porque é, afirma, a mais desgastante, monótona e frustrante de todas as outras – nunca há um vencedor certo. Há muito que prefere a rendição incondicional das endívias tal como vieram ao mundo após momentânea tortura da água, para molhar o pó, mas só quando está mais folgado.

A mãe de todas as batalhas, essa é a Grande Batalha dos Fritos.

Fujo a sete pés como o diabo da cruz mas ele surge quando menos se espera. Nunca me rendo quando o enfrento. Foi o caso de um ataque-surpresa de uma companhia suicida de “éperlans” (espécie de “jaquinzinhos”, muito zinhos) cuidadosamente emboscada numa prateleira frigorífica de supermercado. Armo-me como posso para o planeado e mal-amanhado contra-ataque e peço reforços ao meu amigo Wagner. No galope de um clique, envia-me prontamente, alto e bom som, a poderosa e desembestada Cavalgada das Valquírias que me alimenta a corajosa mas esfomeada voracidade de herói caseiro. Envergo o colete à prova de salpicos, muno-me de garfo e espátula de paus esboroados em anteriores refregas, verto o mortífero ingrediente no campo redondo de fritura, afino a pontaria do fogo e parto para a contra-ofensiva montado no meu cavalo de batalha. Uma verdadeira peixificina! Mãos peganhentas numa argamassa de farinha, ovo, sal e entranhas de fora pela força do envolvimento, poeirada farinhenta no ar, estilhaços de óleo a ferver por todo o lado, macas em beliches de grosso papel absorvente para as dezenas de sacrificados no nojento, caótico e sempre glorioso altar da haute cuisine de trazer por casa.

Fico de língua de fora de tanta água na boca mas quedo-me gaseado. O meu camuflado tresanda. Repouso convalescente. Solicito mais uma vez uma baixa civil existencial que me permita um duche e um justo repouso do guerreiro. Sinto ainda o odor dos gases queimados e peço por tudo que se desimpregnem rapidamente da trincheira. Aguardo resignado que o desvanecimento da memória traumática de tamanho confronto me ponha em posição de combate para nova batalha doméstica.

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