De onde venho

Quando cheguei a Portugal pela primeira vez, me reconheci de imediato. Sentia o cheiro da casa da minha avó paterna. A sua presença é uma constante quando vou ao Norte. Reencontrei minha infância.

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Essa história começa com a minha avó paterna, Maria Augusta, que saiu da cidade do Porto, norte de Portugal, em 1909, aos 19 anos para buscar uma nova vida no norte do Brasil. Já havia tido quatro filhos e trazia consigo os três que estavam vivos. No registro de nascimento, carregavam apenas o nome da mãe. O pai não tinha dado nome aos filhos. Àquela altura, era muito comum que isso acontecesse. Podiam ser filhos de um padre, de um patrão ou mesmo do filho do patrão.

Logo Maria Augusta conheceu meu avô, que tinha o sobrenome Henrique, nascido nos arredores da cidade de Vouzela. Nunca tivemos certeza, mas uma das hipóteses é a de que esse encontro possa ter acontecido durante a viagem. A certeza é que se casaram na cidade de Ananindeua, próxima a Belém. Juntos, tiveram oito filhos e um não sobreviveu. No total, minha avó teve 12 bebês e criou dez filhos. Fisicamente, meus avós eram muito diferentes. Ela, morena, moura, cabelos cacheados negros e olhos profundos. Já o meu avô parecia um nórdico, um viking de pele muito clara e avermelhada.

Descobri essa história recentemente, e me encheu de orgulho. Eu contava com apenas seis anos quando ela partiu. Sua presença forte me marcou para sempre. Me lembro de vê-la sentada nas escadas no fundo de casa, sovando um polvo para cozinhar. No seu quintal tinha uma ginjeira, plantada com sementes trazidas de Portugal. Meu avô abriu o primeiro salão de beleza de Belém, que se chamava Madame Figueiredo. Toda a família trabalhava lá.

Eram muito animados e adoravam o Natal. Me recordo que havia uma disputa entre as tias para saber quem cozinhava melhor, quem fazia a melhor aletria, fios d'ovos e tudo mais para celebrar o 25 de dezembro. Na noite do dia 24, os adultos iam para a Missa do Galo. No dia de Natal, quando acordávamos, encontrávamos presentes pendurados nas meias e nos pés das camas. Toda a família se reunia em torno da bacalhoada. Brindávamos o nascimento de Jesus. Foi assim que eu cresci, entre cozinhados, tesouras, mesas fartas, festas natalinas muito portuguesas e uma família alegre e barulhenta.

Quando cheguei a Portugal, pela primeira vez, me reconheci de imediato. Sentia o cheiro da casa da minha avó. A sua presença é uma constante quando vou ao Norte do país. Reencontrei a minha infância e o que me fez ser gente. De um lado, a parte paterna de imigrantes muito pobres, lavradores do Norte. Já do lado materno, minha avó, com suas origens em uma abastada família açoriana, casada com um homem importante nascido perto da Vila do Pinheiro. Foi nessa mesma região que minha avó paterna decidiu ir viver quando chegou a Belém.

Através do casamento da minha mãe com o meu pai essas famílias de origens tão distintas se uniram. Me deram como herança um olhar sobre o mundo e o gostar de gente. De saber como chegar. Aprendi que a gentileza é fundamental. E devemos saber que não é fácil. A luta é grande, mas é possível. Eu sou fruto dessa junção tão distinta de uma elite portuguesa e imigrantes simples. Todos sempre tiveram um rigor sobre como se comportar no mundo.

Não tenho ideia de onde saiu essa menina rebelde, curiosa e agoniada. A certeza que tenho é que é desse pirão de caboclos do Pará com gente do Norte de Portugal e dos Açores. Uma mistura de mouros com cristão-novos. Esse pirão me deu consistência para chegar até aqui.

Tua Fafazinha, com amor.

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