De regresso à escola do Fernão Pires

Em tese, já devíamos saber quase tudo sobre a casta branca mais plantada em Portugal, mas os enólogos do Tejo gostam de nos surpreender há vários anos com a Fernão Pires.

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Vinhos do Tejo - Fernão Pires Goncalo Villaverde
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E como quem não quer a coisa, já lá vão cinco vindimas e cinco provas alargadas de vinhos brancos da casta Fernão Pires da região do Tejo. Em 2018, quando a Comissão Vitivinícola Regional do Tejo (CVRT) avançou com a ideia de valorizar os vinhos da casta branca mais plantada em Portugal (13.700 hectares) havia cerca de 30 vinhos varietais da casta. Seis anos depois estão no mercado 65 marcas de Fernão Pires. É obra.

Se não cabe a uma comissão vitivinícola dizer aos agentes económicos que vinhos devem criar, também não vem mal ao mundo lançar-lhes desafios. Pela sua natureza orográfica, fundiária e histórica, a região do Tejo é uma espécie de laboratório que se adapta rapidamente às tendências do mercado. Se isso, por um lado, revela dinamismo empresarial, por outro destapa o problema da falta de uma identidade vinícola facilmente percebida pelos consumidores. Perante tal cenário, a CVRT apostou em duas castas com peso na região (Fernão Pires nos brancos e Castelão nos tintos) para, com elas, criar uma narrativa identitária, independentemente de castas como Chardonnay, Touriga Nacional ou Syrah continuarem a entrar nas garrafas da região.

Que a Fernão Pires é amiga do produtor e camaleónica, isso já toda a gente sabia, mas, se calhar, nem os próprios responsáveis da CVRT nem os próprios produtores e enólogos conseguiam, em 2018, imaginar que das adegas do Tejo saíssem vinhos de Fernão Pires com perfis tão diferenciados. Em rigor, devemos perguntar que outra casta branca portuguesa é capaz de dar vinhos leves e vinhos concentrados, vinhos muito aromáticos e vinhos mais contidos, vinhos de consumo rápido e vinhos de guarda, espumantes e frisantes, vinhos de curtimenta ou vinhos de ânfora, colheitas tardias e soleras (estes ainda em estágio) e, por fim, aguardentes de grande nível? Assim de repente não nos ocorre outra. Talvez o Alvarinho. Talvez.

Para quem se habituou a encarar esta variedade como algo que servia quase só para dar volume a vinhos que teriam quase sempre o apoio da casta Arinto por causa da acidez, acompanhar o que se está a fazer com a Fernão Pires é o mesmo que participar num curso de enologia dedicado apenas a uma casta.

A beleza desta iniciativa é ver nestas vindimas comentadas ou nas provas da Lei da Quinta (grupo informal que junta em Santarém produtores, enólogos ou comerciais) gente do sector a discutir e a partilhar novas abordagens à casta, sem aquela velha barreira do segredo como arma do negócio. Se alguém usa barro para fermentar, partilha a experiência com outro colega que quer experimentar; se alguém trabalha uma madeira fora dos modelos habituais, fala abertamente disso. Leveduras, solos, tempos de contacto com as barricas, tudo se aborda livremente. Ao que sabemos, dois produtores andam neste momento em testes para o lançamento de Fernão Pires em modo de solera. Quem imaginaria isso?

Enquanto aguardamos a chegada desses vinhos, falemos de relance dos onze vinhos de Fernão Pires provados recentemente na Quinta da Alorna, onde, com a supervisão da enóloga Martta Reis Simões, sommeliers e críticos de vinhos estiveram a cortar uvas em vinhas de calhau rolado, a pisá-las e a enviar o mosto para uma talha de barro.

Comecemos com dois vinhos da categoria Campo do Tejo, criada para oferecer ao mercado brancos de Fernão Pires mais leves, descomplicados, frutados e baratos. O Pitada Verde Baptista's 2023 (€4) mostrava o perfume e o frutado típicos da casta (flores brancas e melão), com uma boca relativamente curta (não se pode pedir mais). O Adega de Almeirim é um registo marcado pela adição de gás e por uma sensação doce vincada. Talvez este sirva para iniciados ou para um público feminino.

Desafiante estava o Contracena Pet Nat da Quinta da Ribeirinha 2023 (13,5€), pela frescura de boca (notas cítricas) com uma ligeira oxidação. Indicado para receber os amigos e dar conversa à volta de um estilo de vinho que deu origem ao champagne.

O Ode 2022 (€17) é um vinho com preocupações ao nível da barrica. O nariz é marcado pela componente floral, com uma boca acetinada e especiada.

Outra estreia, outro vinho com cuidados na madeira e também nas leveduras de fermentação. O Adega do Cartaxo Fernão Pires (14,5) é delicado, tropical e impressiona pelo volume de boca, pela acidez e pelo potencial de guarda.

E por falar em guarda, o Casa Cadaval 2023 (16), trabalhado em madeira de acácia, revela um perfil diferente. Mais contido e sério (pouco floral ou frutado), vai pelo caminho da mineralidade. Na boca, bastante seco.

Estreado o ano passado, o Companhia das Lezírias Séries Singulares 2020 (24,90) é um belo exemplo de como a casta se porta bem quando fermentada em barro. Esta técnica dá muito carácter a um vinho marcado por aromas minerais e marinhos, com textura e volume de boca, mas com moderação alcoólica.

Já o Gutta Supera 2021 (16,80) é o que mais se aproxima do velho conceito de Fernão Pirão (espécie de tinto feito com uvas brancas), que existe também na Quinta da Lapa. A curtimenta, a extracção e o trabalho de madeira dão origem a um branco que é tudo menos leve. O corpo e a sua acidez fazem dele uma boa companhia para a sopa da pedra.

O Casal da Coelheira Amphora Curtimenta 2033 (13) é outro Fernão Pires em registo de extracção, mas aqui com uma complexidade assinalável (flores de gardénia e massas em fermentação), com a boca mineral a revelar o trabalho do barro. Estranha-se três segundos, mas entranha-se de seguida e de que maneira.

O Quinta da Lagoalva Grande Reserva Fernão Pires (29,90) será, porventura o vinho com perfil mais cosmopolita da prova. Flores brancas, citrinos e notas de bâttonage surgem no nariz. Na boca, grande volume, com os sabores cítricos e o trabalho de barrica em destaque.

Não é pelo facto de ser o vinho da casa onde decorreu a prova, não é por ser oriundo de uma vinha rara (calhau rolado), nem por ter ficado para último, mas, do nosso ponto de vista, foi o vinho do dia. É grande este branco da Quinta da Alorna Reserva das Pedras 2018 (20). E um belo caso para voltarmos a insistir no consumo de brancos com tempo de garrafa, sejam eles do Dão, da Bairrada ou do Tejo. As notas florais e o trabalho de barrica deram lugar a aromas de ervas secas, funcho e especiarias. Untuoso, guloso mas fresco na boca devido à sua acidez, é um vinho que está para dar e durar e que nos faz lembrar coisas antigas que provamos recentemente da Adega do Cartaxo ou da Sociedade Agrícola Areias Gordas.

Em jeito de remate, duas notas: Primeiro, um enófilo que se preze deve olhar para o trabalho que está a ser feito no Tejo com a casta Fernão Pires e mostrar tais vinhos aos amigos em regime de prova cega, que é para ver as reacções de quem ainda tem preconceitos com a casta ou com a região Tejo. Segundo, não seria interessante que outras regiões vitícolas fizessem com uma casta emblemática dos seus territórios o mesmo que a CVR Tejo faz com o Fernão Pires e com o Castelão? Sim, bem sabemos que o vinho de lote é a nossa imagem de marca, mas, ao contrário do que se pensa, os consumidores portugueses ainda precisam de muita literacia vínica. E conhecer uma casta mais a fundo é um belo exercício. E uma abordagem eficaz ao mundo do vinho.

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