Especialistas querem que Portugal legisle antes de partilhar dados de saúde com privados

Regulamento do Espaço Europeu de Dados de Saúde entra em vigor em 2026, mas investigadores defendem uma lei nacional de dados de saúde que clarifique as regras a cumprir.

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Projecto-piloto está a ser preparado com base no regulamento do Espaço Europeu de Dados de Saúde, que estabelece regras sobre a forma como estes dados serão partilhados a partir de 2026 Rui Oliveira
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O projecto-piloto do Registo de Saúde Electrónico único – que começou por ser planeado com o grupo CUF, para depois ser aberto a outros grupos privados – só deve avançar depois de o Parlamento legislar sobre a matéria, defendem os investigadores da área da saúde ouvidos pelo PÚBLICO, para quem só assim se conseguirá assegurar um modelo de governação e regulamentação específica sobre como será feita a partilha dos dados.

Luísa Álvares, farmacêutica e membro da Comissão de Avaliação de Tecnologias de Saúde do Infarmed, defende mesmo uma providência cautelar “urgente” a este projecto-piloto, “para dar tempo ao Parlamento de criar um modelo de governação e regulamentação correspondente, adequados à utilização primária e secundária dos dados de saúde”.

“Primeiro, cria-se a arquitectura do sistema, o modelo de governação e respectiva regulamentação dos dados e das suas utilizações, depois é que se convidam os agentes, então, sim, em igualdade de oportunidades”, preconiza a farmacêutica.

Julian Perelman, economista da saúde e professor e investigador na Escola Nacional de Saúde Pública, também considera que, antes de se avançar para um projecto-piloto, deveria haver um debate público sobre a questão e que os partidos deviam estar envolvidos nas decisões, que considera serem “políticas”.

Para o economista, além da regulação necessária, “deveria haver uma instituição muito forte capaz de aplicar essa regulação” – por exemplo, a Entidade Reguladora da Saúde. Mas, na prática, o regulador “tem pouca visibilidade, pouco poder, pouco peso político”, lamenta o investigador.

Projecto antecipa orientações do Espaço Europeu de Dados de Saúde

Ainda são conhecidos poucos detalhes sobre como será posto em prática este projecto-piloto. Ao PÚBLICO, os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) disseram apenas que o projecto-piloto que estava a ser preparado com o grupo CUF consiste numa partilha dos relatórios clínicos decorrentes de exames realizados em unidades do grupo com o Serviço Nacional de Saúde (SNS), em suporte PDF, através do Registo de Saúde Electrónico – Área do Profissional, e que a funcionalidade ainda não está disponível.

O PÚBLICO questionou a SPMS sobre o modelo de governação de dados definido para o projecto, mas até ao momento da publicação desta notícia não recebeu resposta.

No entanto, o projecto está a ser preparado com base na aprovação, em Abril deste ano, do regulamento do Espaço Europeu de Dados de Saúde, que estabelece regras sobre a forma como estes dados serão partilhados e que terão de ser cumpridas em toda a Europa a partir de 2026.

Henrique Martins, investigador do ISCTE e antigo presidente dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, explica ao PÚBLICO que, no projecto-piloto, “será importante tentar introduzir ao máximo os conceitos que, mesmo que ainda não sejam obrigatórios à data de hoje, vão ser obrigatórios daqui a dois ou três anos”.

Por exemplo, o regulamento prevê que os cidadãos tenham acesso pleno aos seus dados de saúde e que saibam quem lhes acedeu – algo que em Portugal ainda não acontece totalmente.

Apesar de o cidadão já conseguir ver na sua área privada no SNS24 quem acedeu ao seu perfil, essa informação inclui apenas os profissionais de outras instituições que acederam ao perfil online, via Registo de Saúde Electrónico. No que toca aos acessos feitos dentro dos softwares dos hospitais ou centros de saúde, os acessos não são acessíveis ao cidadão. Algo que terá de mudar quando o regulamento entrar em vigor.

Como é um regulamento, o Espaço Europeu de Dados de Saúde terá aplicação directa, sem necessitar de uma transposição para o direito português. No entanto, cada Estado-membro tem autonomia para decidir alguns detalhes sobre como ele é aplicado.

Por exemplo, na aplicação de sanções, é cada Estado-membro que deve determinar se, e em que medida, as autoridades públicas devem estar sujeitas a multas administrativas.

“O direito não esclarece tudo. E o direito europeu, que é resultado do processo complicadíssimo de conversas, de interacções técnicas e pressões políticas, também não vai conseguir resolver os problemas todos de Portugal”, considera Henrique Martins.

Ainda assim, o antigo presidente da SPMS, que tem liderado, nos últimos meses, o XpanDH, um projecto europeu com o objectivo de construir um formato europeu de partilha de dados de saúde, clarifica que o que está em causa no regulamento europeu não é uma partilha das bases de dados do SNS directamente com os privados, por defeito.

“O conceito de partilha, no âmbito do Espaço Europeu de Data de Saúde, é um conceito que tem que ver com o facto de eu, cidadão, querer que os meus dados sejam partilhados, e não eu, Estado, querer que os privados partilhem comigo, ou vice-versa”, explica o investigador.

A partilha só chega a acontecer se o cidadão assim o solicitar. “Isto é muito importante, porque o doente deve exercer esse direito. O problema é sempre o mesmo, é o conhecimento do direito”, lembra o investigador.

Transparência no sistema de saúde “tem de ser regulamentada”

Mas é sobretudo na utilização secundária dos dados de saúde, para investigação científica, que os especialistas pedem uma maior clarificação da lei.

Essa parte do regulamento europeu prevê mais tempo de adaptação – só entra em vigor em 2028, mas é também a parte mais complexa a nível jurídico.

O PÚBLICO questionou a SPMS se esta utilização secundária dos dados será também testada no projecto-piloto previsto, mas não recebeu resposta.

Hoje, não existe modelo de governação nem quadro jurídico para a utilização secundária dos dados de saúde em Portugal. As instituições privadas de saúde não têm obrigação de partilhar dados com o sector público ou com a academia.

“Aos investigadores interessa conhecer as curvas de distribuição dos problemas de toda a população. Não apenas os 20% tratados nos privados ou os 80% tratados no público. Esta distorção à concorrência é como um jogo de futebol em que uma equipa pode pôr a mão na bola para marcar golos e a outra não”, critica Luísa Álvares.

Para Julian Perelman, há muito que é necessário que os privados partilhem os seus dados com o sector público, até por uma questão de qualidade de saúde.

“O SNS há muitos anos que compra serviços aos privados. E compra serviços sem conhecimento de causa. Não tem informação sobre a qualidade dos serviços prestados, sobre as práticas dos privados a quem compra os serviços e também não tem informação sobre os custos. No fundo, é comprar às cegas”, explica o professor universitário.

“Parece-me essencial o sector público ter mais informação sobre o que acontece aos doentes no privado”, continua. “Numa lógica de sistema de saúde, tem de haver transparência por parte de todos os actores. Parece-me óbvio. Isso tem de ser regulamentado.”

Na visão de Henrique Martins, sobretudo no capítulo da utilização secundária dos dados, Portugal terá de criar uma lei de dados de saúde que “clarifique algumas questões”. “A minha leitura é de que apenas o regulamento não vai ser suficiente para fazer com que, por defeito, as entidades públicas ou privadas partilhem todos os seus dados para uso secundário”, diz o investigador ao PÚBLICO.

“Não é exactamente uma transposição, porque os regulamentos não se transpõem, mas complementam-se com o direito nacional”, clarifica.

Julian Perelman e Luísa Álvares vão mais longe: “Trinta por cento da CUF é detida pela Associação Nacional de Farmácias. A Associação Nacional de Farmácias tem uma consultora que fornece dados de saúde à indústria farmacêutica. Será que, através da CUF, a ANF tem acesso aos registos dos doentes? Podem vender dados à indústria farmacêutica ou às farmácias?”, questiona o economista da saúde.

Luísa Álvares tem a mesma preocupação: “Sem um modelo de governação para a utilização secundária dos dados, que exige, no mínimo, revisão dos protocolos de investigação pelas Comissões Éticas de Investigação Clínica do país, que garantias temos de que o grupo CUF, ou qualquer outro prestador, não venderá prontamente os RSE a empresas de curadoria de dados que, por seu turno, uma vez criadas, os registam e comercializam, impedindo o acesso a estudantes e investigadores das academias?”

O regulamento do Espaço Europeu de Dados de Saúde impede a utilização secundária de dados para fins comerciais, incluindo publicidade, avaliação de pedidos de seguro ou de condições de empréstimo ou tomada de decisões no mercado de trabalho. As decisões de acesso às pools de dados anonimizados dos cidadãos europeus serão tomadas pelos organismos nacionais de acesso aos dados – no caso português, a SPMS.

Em caso de violação, há sanções previstas, com coimas que podem ir até 20 milhões de euros ou, no caso de uma empresa, 4% do volume de negócios anual total a nível mundial do exercício financeiro anterior.

Ainda assim, Luísa Álvares alerta para que “o impedimento de utilização secundária para fins comerciais da legislação europeia não impede a compra e venda de dados primários ou de base de dados curadas se os fins forem, por exemplo, para investigação. Além de que é extremamente fácil transvestirem-se fins comerciais em estudos epidemiológicos. Isto já existe, é perfeitamente legal”, afirma.

“Piloto pode evidenciar a necessidade de regulamentação”

Mas será esta legislação específica necessária antes de o projecto-piloto avançar? Tanto Luísa Álvares como Julian Perelman acreditam que sim, que a legislação deve ser clarificada a nível nacional antes de se avançar para projectos a envolver empresas privadas. Já Henrique Martins diz que “um projecto, sendo piloto, tem como objectivo pilotar coisas. Ou seja, um piloto tem como objectivo testar um conjunto de situações técnicas, sociais e jurídicas. Um piloto pode evidenciar a necessidade, por exemplo, de regulamentação”, explica ao PÚBLICO.

O ex-presidente da SPMS não coloca de fora que, “não infringindo o direito actual”, seja feito um projecto-piloto que “ponha a nu a necessidade de regular um determinado aspecto”, que leva depois a que se faça “legislação inspirada e informada por esse piloto”.

Ainda assim, o investigador admite: “O inverso também acho interessante.” “Se nós já vamos ter um regulamento que temos de implementar e eu vou precisar sempre de um documento enquadrador nacional, se calhar também não é pior eu fazer pelo menos um rascunho que estivesse em discussão no Parlamento e fazer o piloto já alinhado com essa legislação.”

No entanto, Henrique Martins deixa uma ressalva: “Importa começar a alinhar os esforços que se fazem com a nova orientação tecnológica, porque senão vamos desperdiçar financiamento.”

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Concorrentes da CUF consideram que foi dada uma vantagem competitiva ao grupo. Governo já admitiu alargar o projecto, “mediante manifestação de interesse" dos privados Rui Gaudêncio
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