Este ano já houve 21 dias em que as temperaturas altas ameaçaram fazer subir a mortalidade

Num país cada vez mais envelhecido e com uma grande carga de doenças crónicas, o índice Ícaro é um indicador que ajuda a tomar medidas destinadas a mitigar o efeito do calor na mortalidade.

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Este ano, até ao dia 23 de Agosto, o Insa identificou 21 dias nos quais foi previsto um possível impacto significativo na mortalidade devido às temperaturas Nuno Ferreira Santos
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Conta a mitologia grega que Ícaro, filho de Dédalo, caiu ao mar Egeu porque as asas feitas de penas de aves e cera, que tinha usado para escapar do labirinto de Creta em que estava preso, se derreteram ao aproximar-se demasiado do Sol. Mas Ícaro é também o acrónimo de Importância do Calor: Repercussão nos Óbitos, um indicador criado no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (Insa) que ajuda a antever o efeito do calor na mortalidade e a tomar medidas preventivas quando soa o alerta.

Este ano, até ao dia 23 de Agosto, o Insa identificou “um total de 21 dias nos quais foi previsto um possível impacto significativo na mortalidade devido às temperaturas”. “Estes dias distribuíram-se maioritariamente por dois períodos: entre 21 e 25 de Julho e 4 e 22 de Agosto”, contabiliza Ana Paula Rodrigues, coordenadora da Unidade de Observação e Vigilância do Departamento de Epidemiologia. Entre o dia 22 de Julho e o dia 4 de Agosto, aliás, e como o PÚBLICO noticiou, Portugal registou uma mortalidade geral acima do esperado, com um total de 727 óbitos em excesso, segundo a Direcção-Geral da Saúde, que atribuiu esse aumento à transmissão de covid-19, mas também às altas temperaturas.

Nestes dois períodos, explica a investigadora, “nem todos os dias tiveram índices Ícaro a indicar um efeito significativo na mortalidade”, ou seja, “foram sendo intercalados dias com índices Ícaro elevados e outros dias com índices Ícaro que não previam impactos significativos”.

Este “é um indicador de previsão que nos diz a mortalidade que é esperada perante determinadas temperaturas previstas” e tem por base o historial de temperaturas das áreas geográficas em análise.

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São sempre monitorizados os três dias seguintes ao evento por se saber que o efeito dos períodos de calor extremo se prolonga por esse tempo Catarina Póvoa

“Recebemos as temperaturas do IPMA [Instituto Português do Mar e da Atmosfera] diariamente e com base na previsão de três dias [o actual e os dois seguintes], estima-se qual é a mortalidade que será prevista para esse período tendo em conta estas temperaturas. Se a mortalidade for superior àquela que seria estimada se as temperaturas fossem mais baixas, há um alerta. Esse efeito é tanto maior quanto mais elevadas forem as temperaturas máximas e quanto maior for o período de duração”, explica Ana Paula Rodrigues.

O Insa não usa a definição de onda de calor meteorológica – a temperatura máxima é superior a 5 graus Celsius​ ao valor médio diário no período de referência durante pelo menos seis dias consecutivos – mas de período de calor extremo, que “é definido, no nosso sistema, como três dias consecutivos com valores do índice Ícaro significativos”. “É uma razão entre a mortalidade que é esperada com o aumento das temperaturas e a mortalidade que seria observada sem as temperaturas elevadas”, explica a investigadora.

O esperado é que o índice Ícaro esteja no valor zero ou muito próximo deste. “Assim que este valor começa a subir, há um alerta de que as temperaturas poderão ter um impacto na mortalidade, que pode ser ou não significativo em termos estatísticos”, o que também depende da dimensão da população em causa. São sempre monitorizados os três dias seguintes ao evento, por se saber que o efeito dos períodos de calor extremo se prolonga por esse tempo.

População vulnerável

Poucos dias depois de se ter sabido que o dia 21 de Julho deste ano foi o mais quente do planeta, António Guterres, secretário-geral da ONU, alertava: “O mundo tem de estar à altura do desafio do aumento das temperaturas.” Já antes, o Serviço de Alterações Climáticas Copernicus, componente de monitorização do clima do programa espacial europeu, tinha contabilizado recordes mensais de calor em Junho. Pelo 13.º mês consecutivo.

Nos relatórios de monitorização sazonal, divulgados pela Direcção-Geral da Saúde durante o Verão, o Índice Ícaro é um dos indicadores tidos em conta na avaliação epidemiológica semanal. O sistema de alerta precoce, criado em 1999, está activo todos os Verões (período entre Maio e Setembro). Durante este período, todos os dias úteis, o Insa gera o boletim com as previsões do impacto das temperaturas.

Em períodos em que o indicador alerta para possíveis impactos na mortalidade, o boletim, que é enviado para a Direcção-Geral da Saúde, autoridades de saúde regionais e distribuído depois pelas autoridades de saúde locais, é gerado também nos fins-de-semana e feriados. Ao longo destes anos, este modelo matemático, que usa como variável a temperatura máxima, “tem funcionado bem”, diz Ana Paula Rodrigues. “Não temos registo histórico de uma onda de calor que tenha acontecido e que o Ícaro não tenha identificado.”

“No contexto actual das alterações climáticas, dos eventos adversos e de populações envelhecidas é cada vez mais importante termos estes sistemas de alerta precoce, porque permite, com alguns dias de antecipação, identificar períodos de risco e a implementação de medidas de acordo com o nível de risco identificado”, refere a investigadora do Insa. Dá como exemplos de medidas a abertura de abrigos e alertas à população.

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Investigadora Ana Paula Rodrigues Catarina Póvoa

“Temos uma população vulnerável, não só em termos demográficos, mas também pelas características sociais e económicas e pelas características da habitação. O facto de termos uma grande carga de doenças crónicas na população mais velha acaba por ter um reflexo na mortalidade, porque sabemos que são os mais velhos, os que têm doenças crónicas e as populações economicamente mais desfavorecidas que estão em maior risco em períodos de calor ou de outros eventos”, explica.

O funcionamento do organismo está adaptado a determinadas condições. Sujeito a uma temperatura mais elevada, “implica uma sobrecarga para o coração, que tem que bombear mais sangue para arrefecer o corpo”, exemplifica. Por isso, continua, “as pessoas que tenham problemas cardíacos e que estejam compensadas para aquelas condições ambientais em que estão a viver, com uma sobrecarga destas rapidamente entram em descompensação”. “Os extremos etários são muito susceptíveis às alterações ambientais e de temperatura, porque se desidratam rapidamente e não têm a mesma capacidade de regular a temperatura que uma pessoa saudável e jovem.”

Indicadores como o Ícaro, e toda a partilha internacional que existe, tendem a ganhar cada vez mais importância no futuro. Um estudo da revista científica Lancet Public Health, recentemente publicado, prevê que as mortes associadas ao calor podem triplicar na Europa até 2100, se se mantiverem as políticas climáticas actuais e houver uma subida da temperatura média global de 3 graus Celsius.

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