Caetano é alentejano, Zambujo, baiano, e Amália, carioca

Verdade, verdade mesmo, é que passamos demasiado tempo colocando a bandeira à frente da língua portuguesa

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Reza a lenda que o cantor português António Zambujo nasceu no coração do recôncavo baiano. Aprendeu a cantar fados em decassílabos com Dona Candolina — renomada professora de português da região — e, logo a seguir, teve aulas de samba no pé da purificação com Rodrigo Antônio Viana Telles Veloso.

Corre na boca miúda, por outro lado, que Caetano Veloso teria, na verdade, nascido em Beja, no baixo Alentejo, numa noite de estrelas de céu alentejano, debaixo de uma azinheira. Nasceu pardo, mouro, e, desde muito miúdo, pintava o rosto com o barro preto de Bizalhães, dedilhava uma viola campaniça e a primeira música que ouviu na rádio teria sido da carioca de Madureira Amália Rodrigues, cantando o fado Xuxu (Amadeo do Vale/Frederico Valério).

Como interessa pouco o que é ou não ficção no mundo da arte e dos “causos”, o percussionista cabo-verdiano Miroca Paris relatou-me certa vez que, em suas digressões pelo mundo com Cesária Évora, era comum acharem no México, em El Salvador ou na Dinamarca, que a Diva dos Pés Descalços era brasileira ou portuguesa.

Na verdade, quando escutamos uma música em inglês na rádio, na primeira audição, a preocupação é perceber que estão cantando em inglês, para, depois então, se tivermos curiosidade, descobrir se o cantor é do Reino Unido, da Austrália ou dos Estados Unidos…

Verdade, verdade mesmo, é que passamos demasiado tempo colocando a bandeira à frente da língua portuguesa. Para o chinês, dinamarquês ou alemão, perceber que estamos cantando em português já é um luxo.

Uma vez, em um concerto da Rua Das Pretas, na Praça do Príncipe Real, em Lisboa, veio ter comigo ao camarim um casal de suecos. A senhora, visivelmente emocionada, disse-me que não conteve as lágrimas entre os sambas e fados que escutou. Seu marido, no entanto, interrompeu-a me perguntando:

— “What are the lyrics in Fado all about?”

A mulher prontamente o respondeu:

— “I can’t believe you don’t feel it’s all about love and pain.”

António Zambujo cantando Chico Buarque ou Carminho cantando Tom Jobim podem soar estranho aos ouvidos de alguns brasileiros, outros, contudo, gostam da provocação. Da mesma forma que Vinícius de Moraes torcia o nariz ao ouvir Frank Sinatra cantando Garota de Ipanema numa bossa para inglês ver, com letra vertida para o inglês por Norman Gimbel: “Tall and tanned and young and lovely the girl from Ipanema goes walking”.

Em todos estes movimentos, além ter ajudado a Bossa Nova de um Brasil de 70 milhões de habitantes em 1962 a ganhar o mercado da música norte-americana que hoje ultrapassa 1 bilhão de ouvintes no mundo, igualmente, ajudou Carminho e António Zambujo — que vivem em um país de 10 milhões de habitantes — a ganharem escala para beliscar um mercado brasileiro atual de 204 milhões de pares de ouvidos.

O que diriam, entretanto, os fadistas ortodoxos de Alfama se, depois de amanhã, este que voz escreve lançar um álbum a cantar o repertório da rainha do fado?

Verdade? “…Só às paredes confesso.”

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