Yes, she can

Não importa se nos inclinamos para a esquerda, centro ou direita. Se acreditamos na democracia liberal, só podemos ser Kamala.

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Megafone P3: Yes she can Gretchen Ertl
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Quer queiramos ou não, estamos a viver um momento histórico. É verdade que esta declaração mais parece um daqueles clichés manhosos retirado de uma publicação de Instagram com um fundo bonito. Mas não é.

No contexto actual, em que a realidade das redes sociais se sobrepõe demasiadas vezes à realidade física, é muito fácil e, até, confortável, refugiarmo-nos em posições extremadas ou ignorar por completo as consequências de qualquer evento, sobretudo quando as mesmas tenderão a ocorrer durante um período mais alargado, ou a sua compreensão seja demasiado complexa.

Podemos achar que a América não tem nada a ver connosco, que são coisas lá deles, que é um país de gente maluca que nunca se entendeu realmente. Podemos assumir que a escolha da maioria dos eleitores do estado do Minnesota não tem qualquer influência no pão que iremos conseguir comprar na nossa próxima ida ao supermercado. Podemos acreditar em tudo isto e, alegadamente, ser felizes.

No entanto, alguém desassossegado por natureza não irá ficar satisfeito com esta ideia. Nomeadamente quando se trata da eleição mais importante de sempre, na maior democracia do Ocidente e no país que, quer se goste ou não, tem sido um farol de progresso, liberdade e democracia para o resto do mundo nos dois últimos séculos.

Mesmo com as particularidades típicas dos EUA e todo o contexto actual gravíssimo que pode, a curto prazo e com relativa facilidade, desembocar numa guerra civil de consequências devastadoras, a saúde da Europa continua a estar intimamente relacionada com tudo o que por lá se passa.

E não é por escrever este texto confortavelmente sentado numa sala com ar condicionado, num dos mais calmos países europeus, que me preocupo menos com o resultado das eleições americanas de Novembro. Muito pelo contrário, é precisamente por ter consciência do impacto que as mesmas terão neste equilíbrio tão frágil a que chamamos de “democracia liberal”, que essa preocupação é enorme.

Mas voltemos ao título deste artigo.

Pelo palco da Convenção Nacional do Partido Democrático em Chicago já passaram algumas das mais influentes figuras do partido, desde logo Joe Biden, Alexandria Ocasio-Cortez, Hillary Clinton, Michelle e Barack Obama. Apelaram, unanimemente, ao apoio incondicional a Kamala Harris para a candidatura ao mais elevado cargo executivo do país, partilhando o boletim de voto (o famoso ticket) com Tim Walz, um democrata mais centrista, conservador q.b., homem, branco, e capaz de se dirigir aos eleitores dos estados críticos do Midwest ou Rust Belt.

Estes apelos não são inocentes. A unidade do Partido em torno desta candidatura é fundamental para derrotar os seus adversários, sabendo à partida que combatem numa luta desigual. Para estes últimos, as regras democráticas não contam, só atrapalham, são ilegítimas e inconstitucionais. A ciência é um mito, assim como as alterações climáticas ou até mesmo a capacidade das mulheres em ser donas do seu próprio corpo. Os factos são fake news e os seus adversários políticos são, na verdade, seus inimigos. Estas palavras não são minhas. Basta um par de minutos de leitura ou visualização de qualquer conteúdo da respectiva campanha para aceder a esta perturbadora panóplia de argumentos.

Nós, europeus, precisamos da democracia americana. Precisamos de uma democracia liberal forte nos EUA que nos inspire a lutar cada vez mais por uma democracia liberal mais forte na UE. Num mundo pejado de autocracias ou, na novilíngua contemporânea, de regimes iliberais, não nos podemos dar ao luxo de perder os EUA, com a sua visão romanceada de terra de oportunidades, de liberdade, de cosmopolitismo, de abertura e tolerância, de inovação, crescimento e progresso.

Joga-se a sobrevivência da democracia mas é, sobretudo, a nossa própria vida, no modo ao qual tão facilmente nos habituámos e que constitui a maior realização da história da Humanidade no campo social e político, que está em causa.

É simplesmente por isso que não importa se nos inclinamos para a esquerda, centro ou direita: se acreditamos na democracia liberal, só podemos ser Kamala.

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