A narrativa como afeto político

Rebeca Andrade e Simone Biles são defensoras de melhor saúde mental aos atletas, são de países distintos, mas não de condições culturais distantes, pois são também mulheres, e mulheres negras.

Ouça este artigo
00:00
04:17

Duas ginastas param o mundo para assisti-las. Saltos impossíveis desafiam a gravidade e avaliadores, e as principais medalhas vão a uma e a outra, até, no último pódio, a reverência trazer a fotografia icônica histórica. Rebeca Andrade e Simone Biles sabem o que fazem. Cuidam do que oferecem, seja nos aparelhos olímpicos, enquanto competidoras, seja nas boates francesas, então amigas e felizes.

Superam suas profissões: são defensoras de melhor saúde mental aos atletas, são de países distintos, mas não de condições culturais distantes, pois são também mulheres, e mulheres negras. Essa construção define como escolheram narrar e potencializar novas formas de olharmos ao esporte, ao outro, aos corpos e ao presente.

Passamos os dias sem percebermos as narrativas atravessarem nossas ações e pensamentos. No contemporâneo, o cotidiano tornou-se o obstáculo a ser superado, e alcançar o dia seguinte já parece ser suficiente. Esse estado de sobrevivência ininterrupto é consequente ao domínio pelo sistema opressor dos meios de sua produção e de nossas reações.

Diversos intelectuais dedicam-se a compreender esse processo denominado, desde Foucault, por biopolítica. Do italiano Giorgio Agamben ao japonês Kuniichi Uno, discorrem sobre como as relações passaram ao controle de interesses específicos. E, talvez, o mais inquieto seja mesmo Achille Mbembe. Com A Comunidade Terrestre, o filósofo camaronês encerra a trilogia — que tem movido as estruturas intelectuais na última década —, pela qual interpõe decolonialismo, biopolítica e antropoceno.

O viver submetido à dominação dos corpos pelos interesses do capital é aspecto recorrente em produções intelectuais. Porém, a importância da narrativa, enquanto dispositivo para elaboração de novas respostas e saídas, permanece ignorada. Ênfase dos estudos do filósofo coreano Byung-Chu Han.

Sem pensarmos em como nos narrarmos e seus desdobramentos, dificilmente nos livraremos do sobreviver utilitarista servil.
Cuidar das narrativas, então, passa a ser cada dia mais relevante, nesse instante de incessante manipulação e dominação das subjetividades pelo medo e desinformação.

Nacionalistas e certos grupos políticos e econômicos compreenderam a forma de impor narrativas, e estas já infiltram Portugal sem pudor. Nossa proteção está na maneira como ampliamos nossa percepção às narrativas e seus movimentos sutis.

Andrade e Biles souberam fazer do evento olímpico, o momento de exposição a seus discursos. E o fizeram pela afetividade, sem precisarem dizer algo mais. Ao nos fazerem sentir suas alegrias, cumplicidades e respeitos, as ginastas inverteram os padrões dos corpos e afirmaram a grandiosidade de seus manifestos.

Para quem não é atleta ou dispõe de tamanho acesso midiático, o importante é ampliar a própria percepção. E o melhor meio a isso está no conviver plural com ideias e experiências sensíveis. A arte e as manifestações culturais são as principais estruturas de experienciação afetiva pela capacidade de surpreenderem e oferecerem o inesperado.

Esse convívio amplia nosso vocabulário simbólico e, por fim, nossa capacidade de percepção dos esconderijos das narrativas que produzimos e das que participamos e somos envolvidos.

Por isso, reagir ao estado de sobrevivência requer novas questões: Qual a narrativa de nosso cotidiano? Qual narrativa construímos enquanto imigrantes? E quando servimos a narrativas que, sem nos atentarmos, são manutenções e fortalecimentos dos sistemas opressores?

Ao invés de corrermos riscos, por narrativas isolacionistas, defensivas, acusatórias e dogmáticas, que tal darmos aos afetos (com correções, quando necessário) a qualidade de um salto triplo improvável, junto a Andrade, Bile e Mbembe?


Sugestão de leituras:

A Crise da Narração, de Byung-Chul Han. Editora Relógio D’Água, 2024.

A Comunidade Terrestre, de Achille Mbembe. Editora Antígona, 2024.

Potências da Suavidade, de Anne Dufourmantelle. Editora n-1, 2022

A Gênese de um Corpo Desconhecido, de Kuniichi Uno. Editora n-1, 2014.

A Potência do Pensamento, de Giorgio Agamben. Editora Relógio D’Água, 2011-2013

Os artigos escritos pela equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil

Sugerir correcção
Comentar