A ilha da Madeira num planeta sacrificado

Será necessário discutir como preservar a floresta laurissilva. Nem que se instalem colunas húmidas e sprinklers de incêndio entre as árvores, como se fosse tão sagrada como a catedral de Notre Dame.

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A Madeira registou 4.392 hectares de área ardida, na sequência do incêndio que atinge a região desde 14 de Agosto HOMEM DE GOUVEIA
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A última noite foi longa para os bombeiros. À mercê do vento, as chamas ameaçavam casas, culturas e pastagens, como em tantos outros incêndios. Nesta noite, porém, as chamas escalavam em direcção ao ponto mais alto da ilha, o Pico Ruivo, até então coberto de verde.

As imagens mostram o óbvio: nem com cordas de alpinismo se chega àquelas escarpas, muito menos com camiões-cisterna. Até mesmo o uso dos meios aéreos se torna praticamente impossível na espessura do fumo que reveste os vales. Isoladas na escarpa, talvez sobrevivam as raras manchas de barbusanos, árvores da laurissilva no sul da ilha. Resta esperar também que as chamas poupem o norte da ilha, refúgio da de floresta de loureiro, til e vinhático, árvores que em tempos cobriram importantes extensões da Europa.

A sobrevivência da laurissilva é a prova de que os manuais escolares de história devem ser revistos: não houve um grande incêndio na ilha, com a chegada dos portugueses, alegadamente para controlar a praga de coelhos. O que aconteceu foi diferente: houve sobreexploração de recursos, com terra queimada, sim, para obter campos de cultivo, para plantar cana-de-açúcar, ainda no século XV. Com mão-de-obra escrava e solo fértil, a ilha tornou-se no maior produtor mundial de cana-de-açúcar, mas declinou bastante no século XVI, presumidamente pela escassez da madeira que lhe deu nome, impedindo o processamento do açúcar.

Como a ideia de pegada ecológica estava ainda longe do vocabulário de Pêro Vaz de Caminha, plantar-se-ia a cana-de-açúcar noutras terras, especialmente, no Brasil, desmatando-se primeiro ao longo da costa atlântica, mais tarde em direcção ao interior. Até ameaçar a Amazónia, tardaria vários séculos, mas o que aconteceu na Madeira, aconteceria um pouco por todo o planeta, com colonos que chegam, exploram e esgotam os recursos, até partirem para novas paragens.

Quando a exploração de recursos já tem impacto global, sem exílio possível, o clima muda drasticamente, como tem acontecido. Não se trata só do resultado da queima de petróleo na atmosfera. Florestas de todo o mundo têm sido dizimadas pelas chamas, nos trópicos, mas também nas latitudes boreais, do Alasca à Sibéria.

Várias florestas estão a emitir mais carbono do que absorvem, mostrando como alguns pontos de não-retorno do aquecimento global podem já ter sido ultrapassados. Vêm por isso alguns autores sugerir que vivemos não no antropoceno, em que as alterações na superfície terrestre são dominadas pela acção humana, mas sim no Piroceno, em que o fogo é o principal agente de mudança.

Sempre houve incêndios, evidentemente. Mas quando a ilha da Madeira regista temperaturas vários graus mais elevadas do que a média; quando, no Pico do Areeiro se regista humidade relativa tão baixa como 10%, isto é, ar tão seco como no deserto do Saara, toda a floresta fica vulnerável. Como esteve nas ilhas Canárias, em Tenerife, no ano passado, num incêndio com dimensões comparáveis ao que alastra na Madeira neste momento.

No futuro, será necessário discutir como preservar a floresta laurissilva. Nem que se instalem colunas húmidas e sprinklers de incêndio entre as árvores, como se fosse tão sagrada como a catedral de Notre Dame de Paris. Efectivamente, a floresta laurissilva tem um valor inestimável, até pelas formas de vida que acolhe e que ainda estão por estudar. Por agora, resta rezar pelo trabalho dos bombeiros e pelas vítimas do incêndio.

Em resumo, precisamos de senso comum para fazer frente às informações falsas do passado. Não, os portugueses não queimaram toda a ilha quando chegaram; teria sido praticamente impossível no clima do século XV. Há praticamente dois milhões de anos que a floresta laurissilva prospera na Madeira, no seu clima ameno, mesmo depois da sua extinção no continente europeu. Já no clima recente, incêndios de dimensões nunca antes vistas, mostram como não há ilhas: todos somos afectados.

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