Bilbau e a existência das pinturas
A leitora Rita Neves andou pela cidade basca, entre cafés, conversas sobre futebol e visitas a museus inspiradas num livro de Javier Marías.
Viagem anual a Espanha, sugestão para um bom equilíbrio cultural. Assim foi, estive em Bilbau, e esclareço já que ainda não foi desta que visitei o Guggenheim. Demasiados turistas, não pôde ser.
Mas comecemos pelo princípio, isto é, pela chegada. De avião por entre as nuvens, percebendo a sinuosa linha da costa basca, depois as colinas verdes, e já estamos no autocarro que nos leva do aeroporto à Gran Vía, prolongando a sensação, veloz por entre as colinas, e de repente atravessamos esta ponte bem inclinada sobre o Nervión, e a súbita aparição arquitectónica do museu Guggenheim é do agrado da visitante.
Aqui estamos então, a visita começa pelo café, aliás, consta que há um ditado, sábio é o que se espanta com o espectáculo dos cafés, ou seria "contenta", depois perguntamos ao Reis. Ora, nos cafés de Bilbau o primeiro ponto a relevar é a harmonia perfeita com que coexistem os que tomam pequeno-almoço tardio de café com leite e tostadas e os que vieram para o copo de branco, muito Rioja. Cada um desfrutando, sem julgamento mútuo, perto do meio-dia.
Também se pode escolher uma das inúmeras Panaderías Bertiz, há sempre uma na esquina seguinte, e ser saudada por um “hola, qué te apetece?” compensa a música em altos berros. Para além disso, ali estão eles, os jornais, encadernados diariamente no suporte de madeira que se pendura junto ao balcão, irresistíveis. Este é o El Correo, em castelhano, e no quiosque pergunto por outros jornais regionais, indicam-me o Deia e o Gara que são bilingues, castelhano e basco.
Para a rota dos cafés, de mencionar o Café Iruña, decoração histórica que sempre agrada, junto a uma praça onde, para além de admirar a igreja de São Vicente e as fachadas de belos prédios do bairro, e o palácio de Justiça não está longe, fico a ouvir a conversa de um casal de reformados, no banco ao lado do meu, estão a elogiar o bom carácter de Carlos Alcaraz, desportista precoce.
Aproveitando a conversa desportiva, confesso que, para além de não ter visitado o Guggenheim, também não assisti a um jogo de futebol, apesar de San Mamés estar na lista de qualquer fã, mas o acaso fez com que escolhesse o hotel onde a equipa se concentrava antes do Athletic-Betis dessa noite, e confirmo que o Iker Muniain por lá andava, ar feliz, e que todos os golos do jogo se ouviram do hotel.
A cultura futebolística basca merece vários tratados, a sobre-representação de treinadores bascos na elite não passa despercebida ao adepto atento e recomenda-se a revista Panenka (outra razão de vir a Espanha) aos interessados. Refira-se também a particular filosofia do clube, a de incluir no plantel apenas jogadores originários ou com uma grande ligação ao País Basco. Saliento ainda duas estrelas actuais do clube, os irmãos Nico e Iñaki Williams, de origem ganesa, e não sei o que pensar de um miúdo basco de seis anos que pronuncia, hesitante e sob supervisão parental, a frase “a mí me gustan los negritos” quando exprime a sua admiracão por Nico e Iñaki falando de futebol com um senhor adulto simpático que meteu conversa no aeroporto, tendo explicado esse senhor, que é negro, que é jogador de basquetebol a caminho do seu novo clube na Alemanha.
Mas estávamos num banco de jardim, aqui perto do bairro de Abando, avenidas largas e faustosas, nas imediações está também o El Corte Inglés, e à entrada uma senhora tocando harpa, será inabitual, e também os dois pedintes desta rua, que estão tranquilamente lendo livros, o recipiente com algumas moedas na frente. Acrescente-se que este Corte Inglés tem boa livraria, e a Casa del Libro também está perto, mas a livraria que preferi em Bilbau está na rua Iparraguirre, comprei Corazón tan blanco de Javier Marías e assim me inspirei para ir ao museu.
Ir ao museu de vez em quando, actividade aparentemente banal, mas afinal a existência das pinturas quase parece um golpe de sorte. Pegue-se então no livro de Javier Marías recentemente adquirido, leia-se uma das cenas no museu, ao fim do dia, hora de fecho, um dos funcionários está de saída, um dos guardas igualmente e cruzam-se em frente a um quadro, uma obra-prima qualquer. Conversa de circunstância, até que o guarda acende um isqueiro, e de repente são quatro páginas de angústia, vai queimar o quadro ou não.
A minha visita ao Museu de Bellas Artes de Bilbao foi menos turbulenta. O espaço é calmo, visitantes quanto baste, dois pisos, a visita é no edifício antigo, há obras no edifício ao lado, não se paga. A exposição que visito propõe um "cara a cara" entre duas obras, podem ser distantes no tempo e no estilo, mas de alguma maneira dialogam, gosto do jogo. Mas sobretudo gostei destas pinturas do século XVII, O sacrifício de Isaac (c. 1616, Pedro Orrente), Os peregrinos de Emaús (c.1635-1640, Pedro Orrente), São Sebastião curado pelas santas mulheres (c. 1620-1623, José de Ribera), A Virgem com o Menino Jesus e São João Baptista criança (1662, Francisco de Zurbarán), e agradeço também eu aos guardas dos museus, e cito Marías “hay que mantenerlos orgullosos y alegres y en estado psíquico satisfactorio” (página 125). Vi também quadros de Zurbarán, Goya, Gauguin, Sorolla, e algumas paisagens da costa basca, valeu a pena.
Antes de deixar Bilbau, um último passeio pelo parque Doña Casilda Iturrizar, saudando a estátua de um músico com batuta de maestro e acordeão aos pés, do parque vê-se a grande torre Iberdrola, e continuamos até ao rio, entre os que fazem jogging, os que jogam basquete, e pingue-pongue, e lembro-me que desta vez não fui ao centro histórico, também não comprei uma raspadinha no Once, fica para a próxima.
Rita Neves (texto e fotos)