Falha técnica atrasou “entrevista” no X. Seguiu-se um comício de Trump para Elon Musk
Trump repetiu argumentos de campanha numa conversa amena com Musk na rede social X. Homem mais rico do mundo reiterou apoio ao candidato presidencial republicano, apesar de divergências pontuais.
Tinha sido anunciada como uma "entrevista", mas o anfitrião disse logo no arranque que seria afinal "uma conversa". Duas horas depois, o que cerca de um milhão de utilizadores da rede social X tinham testemunhado foi uma espécie de comício do candidato republicano às presidenciais norte-americanas, Donald Trump, para uma plateia de um homem só. E esse homem, Elon Musk, o mais rico do planeta, ouviu pouco mais que uma repetição do que o ex-Presidente norte-americano tem dito ao longo dos últimos meses, sem novidades dignas de registo.
O encontro virtual entre Trump e Musk no X arrancou com 42 minutos de atraso devido a uma falha técnica que o dono da rede social atribuiu a "um ataque DDoS", sigla que descreve a sobrecarga intencional de acessos a um site ou serviço para inoperacionalizá-lo. A alegação, no entanto, é posta em causa pelo facto de o X ter permanecido acessível durante esse período, com a falha técnica a restringir-se à conversa entre o candidato presidencial e o bilionário. Ao site tecnológico The Verge, um funcionário da empresa acusava Musk de mentir com "99%" de probabilidade.
De resto, não foi a primeira vez que ocorreu uma falha semelhante. Em Março de 2023, Musk convenceu o governador da Florida, Ron DeSantis, a anunciar a sua candidatura noutra transmissão em directo no então Twitter. Tal como nesta segunda-feira (madrugada de terça em Portugal), DeSantis teve de esperar cerca de meia hora para se fazer ouvir na rede social, também devido a problemas técnicos.
Na altura, Trump ridicularizou o seu adversário nas primárias republicanas, então apoiado por Musk. Um ano depois, e apesar de o bilionário ter criticado o ex-Presidente e sugerido que este está demasiado velho para regressar à Casa Branca, o fundador da Tesla e da SpaceX apoia publicamente Trump, tendo-o convencido a regressar à sua rede social, e fazendo campanha pelo republicano na plataforma.
E foi sobretudo isso que aconteceu esta noite, uma acção de campanha de Trump numa rede social detida por um aliado político. Sem filtro e quase sem contraditório, o candidato dos republicanos arrancou com uma longa repetição do relato da tentativa de assassinato que sofreu a 13 de Julho, num comício na Pensilvânia. Trump tinha dito na convenção republicana de Milwaukee, dias depois, que não iria falar do episódio, "demasiado doloroso" para recordar, mas já quebrou a promessa várias vezes desde então. Tal como Musk tentou várias vezes, e em tom conspiratório, no arranque da conversa, que o convidado abordasse as falhas de segurança que permitiram o atentado. Mas Trump preferiu elogiar os agentes dos serviços secretos que o protegeram no palco e o franco-atirador que eliminou o atacante, cujos motivos permanecem sob investigação.
'Vamos ter a maior deportação na história deste país'
Grande parte da conversa seria depois ocupada com as críticas de Trump à Administração Biden no dossiê da imigração, com o republicano a repetir alegações como a entrada irregular de "20 milhões" de estrangeiros nos Estados Unidos ao longo dos últimos quatro anos, ou a ideia de que países como "a Venezuela" estarão a esvaziar as suas prisões e a enviar "assassinos e traficantes de droga" para a América do Norte.
Musk, nascido na África do Sul e "falando como alguém que é um imigrante legal", disse então acreditar que "a maioria dos ilegais são provavelmente pessoas boas e trabalhadoras" e defendeu a reforma dos canais legais de imigração. Trump reconheceu a necessidade de imigração legal e controlada, mas insistiu que há "muitos terroristas" e "pessoas mesmo más" a entrar nos Estados Unidos, responsabilizando Biden e Kamala Harris.
“Vamos ter a maior deportação na história deste país, e não temos alternativa”, voltou a prometer, recuperando uma das propostas que são comuns ao programa do Partido Republicano e ao Projecto 2025, um manual de governação desenhado pela ultraconservadora Fundação Heritage, que Trump tem no entanto renegado publicamente.
Outra proposta que também consta do documento da Fundação Heritage e que Trump repetiu durante a conversa com Musk: “Quero encerrar o Departamento da Educação e passar a educação para os estados."
“Há muitos estados em que não vai correr bem, se calhar nuns 20 não vai correr bem, mas nos outros 30 vai correr muito bem. E vai custar menos de metade do que em Washington", disse.
“Se os estados tiverem de competir entre si, as pessoas vão mudar-se para os melhores estados”, anuiu Musk, que anunciou recentemente a intenção de deslocar a SpaceX e o X da Califórnia para o Texas, para onde já tinha mudado a Tesla.
Divergência no clima, nuclear e inflação
Houve, contudo, alguns esboços de discórdia entre Trump e Musk. O bilionário, que diz ter uma "posição moderada" relativamente às alterações climáticas, defendeu a necessidade de uma transição gradual para fontes de energia sustentáveis, embora recusando apressar o processo ou "diabolizar a indústria do petróleo". Apontando o aumento da concentração de partículas poluentes na atmosfera, o dono da Tesla, companhia de carros eléctricos, defendeu uma transição num horizonte de 50 a 100 anos. Trump, que até há poucas semanas ridicularizava a aposta na mobilidade eléctrica, e que defende o aumento da produção petrolífera como remédio para conter a inflação, disse que a transição só será necessária num prazo de 100 a 500 anos. Só no Alasca, alegou, ainda "há mais petróleo por explorar do que na Arábia Saudita".
Musk discordou também da receita de Trump para o combate à inflação. Para o bilionário, que aproveitou para pedir menor regulação sobre as empresas, tudo se resolve com a contenção da despesa pública. Trump insistiu na exploração petrolífera. Mas ambos elogiaram a política fiscal e económica do Presidente argentino Javier Milei.
“Para mim, o maior problema não são as alterações climáticas, é o crescimento do nuclear”, disse Trump. Referia-se aos arsenais nucleares da China, Rússia e Coreia do Norte, aludindo ao risco de uma "III Guerra Mundial". Mas Musk aproveitou para defender a energia nuclear como alternativa às fontes fósseis. Trump lembrou os desastres de Fukushima e de Chernobil, alegando que as populações locais estão impedidas de regressar às áreas contaminadas durante "centenas" ou "milhares de anos. "Não é verdade", contestou Musk, que disse ter comido vegetais cultivados em Fukushima para provar a sua segurança. “Sim, mas tu não te tens sentido muito bem ultimamente e estou preocupado contigo”, ironizou Trump.
Kamala 'pior que Bernie Sanders'
O nuclear foi deixa para Trump retomar um discurso já conhecido: que a América seria respeitada internacionalmente durante a sua presidência, e que crises como a da Ucrânia ou de Gaza não teriam ocorrido consigo na Casa Branca. Trump voltou a falar da sua "boa relação" com Vladimir Putin, Kim Jong-un e Xi Jinping, e disse que "a União Europeia aproveita-se dos Estados Unidos", acusando os parceiros europeus de não contribuírem financeiramente para a defesa do continente ou para o esforço de guerra da Ucrânia.
E repetiu ataques a Biden - "ele tinha um QI muito baixo há 30 anos, agora nem deve ter QI, que a escala não apanha nada tão baixo" - e a Kamala Harris - "uma radical esquerdista pior que Bernie Sanders".
Na fase final da conversa, Musk sublinhou o seu apoio a Trump, dizendo estar em jogo "o destino da civilização" nas eleições de Novembro, e rejeitou ter-se aproximado da extrema-direita, apesar das suas publicações incendiárias e xenófobas no X. “Sempre pensei em ti como alguém mais ou menos de esquerda”, disse Trump. “Esperei seis horas para apertar a mão a [Barack] Obama” em 2013, disse o bilionário, que se descreveu como um antigo "democrata moderado" desiludido com o "radicalismo" da Administração Biden.
Musk ainda tentou por várias vezes incentivar Trump a deixar uma mensagem de alento em relação ao futuro, dirigida sobretudo aos eleitores "independentes e moderados" eventualmente indecisos. Nem nas alegações finais Trump conseguiu muito mais do que repetir mensagens-chave da sua campanha: que os americanos viviam melhor e com mais dinheiro durante a sua presidência, e que os seus adversários são radicais e incompetentes. Acabou por ser o ex-Presidente a pôr termo ao seu próprio tempo de antena, quase três horas depois do arranque anunciado de uma entrevista que não chegou a sê-lo.