Aqui na América
Ouçam Bernie Sanders
Notas made in USA sobre a vida americana. Pedro Guerreiro escreve a partir dos Estados Unidos.
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Ia sempre haver alguém a poder dizer "eu bem vos dizia", como escrevi há uma semana. Calhou aos que apontavam a vitória de Donald Trump, que era perfeitamente possível no limite da margem de erro das sondagens nacionais e estaduais.
Perfeitamente possível e, no entanto, um cenário de pesadelo em que os democratas nunca quiseram acreditar, tanto que temiam sobretudo que a sua vitória fosse revertida nos tribunais, no Congresso, ou até por via de um golpe de Estado.
Mas não houve golpe, nem seria necessário. Trump venceu categoricamente no voto popular e no colégio eleitoral, e os republicanos conquistaram o Senado e seguraram a maioria na Câmara dos Representantes, que se juntam agora a um Supremo Tribunal também de maioria conservadora.
Como é que Trump vence com todos os seus "apesares"? Ganha porque conseguiu explorar a fortíssima insatisfação económica do eleitorado e prometer-lhe que vão voltar a ter mais dinheiro no bolso, por via de cortes nos serviços públicos, reduções de impostos, recuos na regulação, deportações em massa de imigrantes ilegais e tarifas pesadíssimas sobre as importações.
Funcionará? Há tremendas dúvidas. Será sequer executado metade do que foi prometido? Há decisões que nem o Presidente dos Estados Unidos pode tomar sozinho, e os republicanos não têm maioria qualificada no Senado. A fortíssima sociedade civil norte-americana tentará bloquear ou atrasar na justiça tudo o que toque em direitos consagrados. E os estados democratas, com a Califórnia do presidenciável Gavin Newsom à cabeça, também já avisaram que serão uma força de bloqueio, dentro do muito que a arquitectura federal do país lhes permite.
E como é que Kamala Harris e os democratas perdem com todos os "apesares" de Trump? Como naqueles documentários sobre desastres aéreos em que tudo corre mal ao mesmo tempo.
Com ou sem justiça, a Administração Biden é tremendamente impopular, e os democratas não conseguiram explicar ao eleitorado porque é que os bons números da economia (crescimento acelerado, emprego recorde, inflação agora em queda) não se traduzem naquilo que mais lhe importou nesta eleição: dinheiro no bolso.
Até demasiado tarde, os democratas ficaram reféns da sua deferência ao Presidente Biden e da teimosia deste, negando até aos limites da tragicomédia o evidente problema de desgaste físico e intelectual do seu candidato, e adiando até pouco mais de 100 dias das eleições a troca por Kamala Harris. Não se deu tempo para um processo de primárias que podia ter gerado uma candidatura mais forte. Nesse sentido, o regresso de Trump arrisca agora ser o maior legado de Biden.
Muito se escreverá ainda sobre a campanha de Harris. Houve momentos de grande entusiasmo, em Julho e de Agosto, incluindo na convenção democrata de Chicago, que deixaram os republicanos momentaneamente em pânico. Conseguiu-se juntar sob a mesma tenda a esquerda progressista de Alexandria Ocasio-Cortez e Bernie Sanders e neoconservadores proscritos pelo trumpismo como a família Cheney e Adam Kinzinger. Cavalgaram-se fenómenos virais nas redes sociais e cativou-se a geração TikTok. Angariou-se dinheiro em ritmo recorde. Mais tarde, mesmo quando já havia sinais de esmorecimento, o debate com Trump ainda foi um triunfo inegável para Harris.
Mas o balão esvaziou-se, mesmo sem uma "surpresa de Outubro" ou qualquer rasgo de génio da candidatura adversária. Pós-convenção, Harris conduziu uma campanha desnecessariamente contida. Foram raros os momentos de contacto directo, sem guião, com eleitores e jornalistas. Concedeu pouquíssimas entrevistas, sempre em tom cauteloso e defensivo. Nelas, não conseguiu distanciar-se de Biden, nem explicar convincentemente o que faria diferente. O seu blitz final por podcasts e programas de entretenimento visou sobretudo pregar aos convertidos, às mulheres, à comunidade afro-americana, sem marcar a agenda mediática.
Os seus curtíssimos discursos foram sempre variações ténues do mesmo stump speech: um arrazoado sobre esperança, futuro, democracia, direitos, oportunidades, que para a frente é que é o caminho, que não podemos voltar para trás. Quase sempre os mesmos dez minutos, de Chicago a Filadélfia, frustrando apoiantes que viajavam horas e esperavam outras tantas para ouvir Harris, enquanto Trump massacrava a sua plateia durante mais de hora e meia, é certo, mas fazendo valer-lhe o dinheiro e o tempo.
Isto tornou-se flagrante nos dias finais de campanha, quando os comícios de Harris se transformaram em concertos, quando os convidados musicais passavam mais tempo em palco que a candidata democrata. Ou em passadeiras vermelhas para estrelas multimilionárias como Oprah e Beyonce, tão distantes do dia-a-dia do americano comum e, percebe-se agora, com questionável impacto eleitoral.
Em retrospectiva, questiona-se também a escolha de Tim Walz para "vice". De nada valeram as suas credenciais de tipo terra-a-terra do Midwest, de classe trabalhadora e sindicalizado, no Wisconsin, no Michigan e na Pensilvânia (onde podemos apenas imaginar o que teria sido ter Josh Shapiro a "vice").
Mas tudo isto é táctica. Falemos de substância. Melhor ainda, citemos Bernie Sanders, o senador independente do Vermont que alinha com os democratas no Senado e que concorreu à nomeação presidencial em 2016 e 2020: "Não devia ser uma grande surpresa um Partido Democrata que abandonou a classe trabalhadora descobrir que a classe trabalhadora o abandonou. Primeiro, foi a classe trabalhadora branca, e agora são os trabalhadores latinos e negros também."
Eis o cerne da questão e um alerta válido para a esquerda e para a direita. De pouco vale o crescimento económico se a percepção generalizada das pessoas, como assinala Sanders, é de que este favorece apenas uma minoria privilegiada. Ou os mínimos históricos de desemprego, se os salários crescem abaixo dos preços e, como aponta Sanders, os vencimentos ajustados à inflação são hoje mais baixos do que eram há 50 anos. Ou os grandes avanços tecnológicos, se a perspectiva entre os trabalhadores, sobretudo os mais jovens, é de terem menor qualidade de vida e menor poder de compra que a geração dos seus pais.
Isto são problemas mais imediatos para o eleitor médio americano, seja homem ou mulher, branco, ou negro, ou latino, do que preocupações um pouco mais distantes como o aborto ou a xenofobia, ou muito mais distantes como o estado da democracia. O fim do mês está mais próximo do que o fascismo.
Harris e o Partido Democrata não tiveram nem têm uma resposta curta e inteligível para isto. Trump é a personificação do privilégio e quer levar o homem mais rico do mundo para o Governo, mas promete mais dinheiro no bolso dos americanos e com isso vence as eleições. Outros oportunistas se seguirão enquanto o problema de base se mantiver.
Mas quererá a esquerda reflectir e aprender? Parte dela sim, outra parte não. No mesmo Vermont de onde saiu aquela declaração de Sanders, e de onde vos tenho escrito ao longo da maior parte do último ano e meio, destaco uma partilha sintomática que uma proeminente autarca deste estado fez durante o fim-de-semana, na sua conta institucional nas redes sociais.
Numa espécie de manifesto, um tal Conselho Nacional da Juventude Trans veio exigir a abolição da polícia, das fronteiras e do sistema judicial; o fim do patriarcado heterossexual cisgénero; a decolonização e reparações para todos os povos indígenas e negros, e o fim da supremacia branca global.
Ausente desta lista de exigências, como terão reparado, está qualquer referência ao problema da habitação, gravemente impeditivo para uma juventude que precisa de autonomia para construir a sua vida adulta. Ou ao aumento do custo de vida que decidiu as presidenciais. Ou aos custos obscenos da saúde e do ensino superior nos Estados Unidos. A crer neste manifesto, não são questões que preocupem a juventude trans que o dito conselho alega representar. Nem tão pouco a violência de que é desproporcionalmente alvo, já que pedem o fim da polícia e dos tribunais.
Isto é um belíssimo plano para ganhar umas centenas de votos nos enclaves mais liberais da América. E para continuar a perder o resto do país.
Não foi por ali que Harris perdeu as eleições, até porque fez uma campanha marcadamente ao centro, e que falhou, mas está ali um belo exemplo de alguns dos entraves que os democratas e a esquerda norte-americana enfrentam para voltar a vencer: a atracção por causas virtuosas e assuntos etéreos que pouco dizem a eleitores que vivem dia-a-dia, salário a salário. "É a economia, estúpido!" Comecem por ela, que logo se criam as condições para o resto.
PS: O boicote muçulmano, árabe e estudantil a Harris, em protesto pelo apoio da Administração Biden a Israel, não pode ser responsabilizado pela derrota dos democratas, demasiado estrondosa para ser atribuída a um único bloco eleitoral. Mas concretizou-se, como fora prometido, sobretudo no Michigan. É outro exemplo de um protesto inconsequente. Ou, pior ainda, contraproducente. Não se espere de uma segunda Administração Trump nada menos que um cheque em branco a Israel (onde se fala abertamente da anexação formal da Cisjordânia), uma maior repressão dos protestos nos EUA, e ainda o regresso das restrições à entrada de pessoas oriundas de países muçulmanos. Convinha que reflectissem também.