Quando o assunto é tiro com arco, Gazoz não treme

Mete Gazoz, arqueiro turco, tem sabido intrometer-se numa modalidade que é pelouro dos sul-coreanos. Em Tóquio, bateu-os em nome próprio. De Paris, já leva uma medalha – para já.

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Mete Gazoz em acção em Paris Tingshu Wang / REUTERS
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Este era para ser um texto sobre Mete Gazoz, arqueiro turco que em Tóquio quebrou o vasto domínio da Coreia do Sul nesta modalidade – talvez não haja nenhuma outra com uma nação tão soberana. Só isso. Mas passou a ser um texto sobre Mete Gazoz, arqueiro turco que quebrou o vasto domínio da Coreia do Sul nesta modalidade e que, além disso, lida com síndrome de Tourette, mesmo que suave, e é campeão numa das modalidades que, em teoria, menos permitiria essa condição.

Nesta segunda-feira, quando falou com o PÚBLICO na zona mista de Invalides, em Paris, após a vitória nos oitavos-de-final da prova por equipas, Mete Gazoz evidenciou tiques invulgares no cidadão comum e mais improváveis ainda num atleta – e, acima disso, num atleta de uma modalidade que requer precisão e controlo corporal tremendos, algo que, em tese, não se coaduna com os efeitos do Tourette.

Por um lado, isto expôs a parca competência do jornalista na investigação pré-entrevista. Por outro, mostra que, por vezes, as histórias “caem do céu”. Para bem do ego, vamos acreditar que é a segunda versão, até porque Gazoz, que se auto-intitula famoso na Turquia, é de pouca fama internacional.

Num primeiro tête-à-tête com Gazoz, de manhã, houve pudor em questioná-lo sobre os tiques que, nesse momento, eram apenas isso: tiques. Mas uma pesquisa pouco depois, na imprensa turca, mostrou que o atleta tem a doença.

Na prova sente-se bem

Voltámos à competição à tarde, após a meia-final na qual conquistou o bronze pela Turquia, para voltar a falar com Gazoz, agora já sem pudor. O atleta de 25 anos diz-nos que no dia-a-dia de arqueiro nem considera bem uma doença, porque a sente mais na fala – e nos tiques e espasmos corporais que faz em discurso oral.

“O meu cérebro processa tão rápido que a boca não acompanha”, explica ao PÚBLICO. E sendo as manifestações mais ao nível de fala, está protegido: no tiro com arco... não tem de falar.

E não é difícil ver que é mesmo assim. Em competição, a concentração permite ao atleta manter-se firme – um pouco como pessoas que controlam gaguez e tiques a cantar ou a falar na rádio, por exemplo.

A extensão da Tourette de Mete Gazoz é mais ou menos essa. Talvez mais intensa nos tiques do que um mero gago, sim, mas pouco mais do que isso. “Eu tenho um nível mínimo e é controlável”, explica.

Famoso na Turquia

A rotina de Gazoz é sempre a mesma: silêncio total no recinto, transmissão televisiva com grande plano no rosto e nas mãos do atirador, concentração, mira apontada e... vum! Uma seta disparada e transmissão televisiva imediatamente a focar o alvo.

Está é das modalidades em que a transmissão melhor trabalha o detalhe, no início e no fim do acto técnico, mas também daquelas em que mais pressão e exposição são colocadas no atleta, que tem milhões focados na sua expressão facial e no seu detalhe técnico a disparar.

Mas ele não sofre com a pressão, até porque apesar de a nível internacional ser de fama muito reduzida, diz ser uma figura famosa na Turquia, até pela medalha conquistada nos últimos jogos Olímpicos.

“Às vezes, é difícil andar na rua ou ir a um restaurante, sobretudo depois do título olímpico em Tóquio. Não consigo comer. As pessoas param para fotografias”, conta, acrescentando que brincam muito com o apelido. “As pessoas metem-se comigo porque o meu apelido, em turco, significa gasosa. Conheces a Sprite, a bebida? Em turco, Gazoz significa isso. É engraçado”.

“É um campo de batalha mental”

Nesta segunda-feira, frente à Colômbia, começou com um tiro de 6 pontos, baixo para o objectivo do jogo – 9 e 10 são bons, 8 é aceitável, 7 e 6 são baixos.

O 6 a abrir, e logo da parte da estrela turca, motivou um “bruá” nas bancadas de Invalides, praticamente cheias numa manhã de sol e calor intensos.

Quase todos de chapéu, como os próprios atletas – Gazoz nunca abdica do seu chapéu de pescador –, os espectadores assistiram à redenção do turco, que no último set, na ronda decisiva, disparou o 10 final que eliminou os sul-americanos. E ainda liderou a equipa até ao terceiro lugar, com medalha de bronze.

Após os "oitavos", Gazoz explicou ao PÚBLICO que “começar com um 6 acontece às vezes e que o importante é repor a tranquilidade emocional”.

“Tens de ser disciplinado e muito forte mentalmente, porque aquela área de jogo que está ali atrás é uma guerra mental. É um campo de batalha mental. Não podemos bater os outros fisicamente, temos de os bater mentalmente. Tentas afectá-los pelas expressões e pelos esgares. E pelo talento, claro”, detalhou.

400 setas por dia

E talento não lhe falta. Nem trabalho. Diz-nos que dispara 400 setas por dia nos treinos em períodos de competição e 700 por dia em períodos fora de prova.

E este treino intensivo tem mais extensões. Além de um psicólogo, Mete Gazoz já se inscreveu em basquetebol para melhorar a coordenação, andou em cursos de pintura para melhorar a visão e atenção e num curso de piano durante dois anos para melhorar a coordenação entre olhos e mão.

Resultado: medalha olímpica em Tóquio, intrometendo-se no pelouro dos sul-coreanos, e já uma medalha nestes Jogos: o bronze na prova por equipas. Em Paris, pode tornar-se o primeiro arqueiro dos Jogos pós-1972 a defender o título. E pode ser apenas o quinto a ter mais do que uma medalha olímpica.

Como é que há registos individuais tão pobres na modalidade? Porque os sul-coreanos, os dominadores, são tão fortes e têm tantos atletas por onde escolher que o processo de selecção para os Jogos Olímpicos dificulta a repetição de atletas.

Como lembra um artigo do Expresso, An San, com três ouros em Tóquio, nem sequer conseguiu vaga na equipa para Paris. É dito que a prova de apuramento nacional, na Coreia do Sul, é tão ou mais difícil do que a prova olímpica. Isto se ignorarem Mete Gazoz.

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