No final da semana, estava orgulhosa de mim mesma, já tinha quatro parágrafos escritos desta newsletter. Era sobre a esperança democrata e a esperança do "mundo livre" no surgimento de um novo nome na corrida às presidenciais norte-americanas. Ao longo da semana, no Ímpar, deixámo-nos contagiar por esse suspiro de alívio de termos dois anciões a disputar as eleições e de haver um rosto novo, uma mulher.

Escrevemos sobre os apoios que imediatamente surgiram na poderosa indústria de Hollywood; sobre George Clooney apoiar Kamala Harris, depois de ter escrito uma carta a pedir encarecidamente a Joe Biden que abandonasse a corrida; sobre Beyoncé autorizar o uso da canção Freedom durante a campanha eleitoral de Harris, quando a campanha de Trump continua a ouvir "nãos" de artistas norte-americanos que não querem ver o seu nome associado ao republicano.

E depois começámos a reflectir sobre o impacto de ser uma mulher, ser negra, ser casada com um homem que trazia filhos de um outro casamento — quando da eleição de Kamala Harris à vice-presidência, traçámos o perfil de Dough Ehmoff . Tudo questões que começaram a ser esmiuçadas pela campanha do seu opositor — um homem branco, que agora é o mais velho na corrida, casado pela terceira vez, com filhos dos três casamentos, e condenado num processo-crime, no caso do silenciamento de uma actriz de filmes pornográficos, para nos cingirmos apenas à "moral e bons costumes" e não falarmos do incitamento constante ao ódio, que levou à invasão do Capitólio.

Assim, publicámos uma reflexão da jornalista brasileira Mariliz Pereira Jorge sobre tudo o que Kamala Harris tem e que a deveria afastar da presidência, segundo os republicanos, encabeçados por J.D. Vance; um artigo de opinião de Robin Givhan, editora de moda do The Washington Post, sobre a generosidade de Joe Biden, sobre a disponibilidade de Dough Emhoff em ficar ao lado da mulher, sobre uma série de homens que se comprometeram a protegê-la e a servi-la — um passo em frente na igualdade de oportunidades. E, por falar em moda, um artigo de Rachel Tashjian sobre o guarda-roupa da candidata, como foi evoluindo da descontracção à elegância — o que vestimos importa e diz muito sobre nós, nunca duvidem.

Desconhecido para mim, J.D. Vance tem-me surpreendido, desde que foi escolhido por Trump para ser o seu vice-presidente, fazendo Sarah Palin parecer uma intelectual. A Internet tem ido buscar coisas que o republicano, casado com uma advogada de origem indiana e pai de três filhos, tem dito sobre violência doméstica — é aguentá-la, afinal foi esse o exemplo que os avós lhe deram —; sobre o que pensa de pessoas que não casaram e não tiveram filhos — chamou-lhes "senhoras dos gatos", embora critique homens e mulheres, que estes não deviam concorrer ; sobre como as pessoas que querem abortar e têm de ir a outro estado fazê-lo devem ser impedidas; sobre o voto das crianças, como devia ser dado o poder aos pais de votar pelos filhos — a ideia não foi totalmente explorada, por isso, não sabemos como seria se pai e mãe votassem em partidos diferentes.

Pegando na ideia de as pessoas sem filhos não terem o direito a exercer funções públicas ou mesmo votar, a actriz Jennifer Aniston veio a público criticá-lo, lembrando o seu próprio caso, o da infertilidade, que chega a muita gente. Mas Vance não atacou apenas as pessoas que não podem ter filhos, atacou também as madrastas e padrastos, afinal, Harris não tem filhos, mas acolheu os descendentes do seu marido como seus, ela é mãe como tantos homens e mulheres que escolhem para companheiro de vida alguém que tem filhos. Portanto, Vance continua preso à sua América profunda (aquela em que nasceu, aquela que é o seu eleitorado) e ataca todos os modelos de família que não são o tradicional (esperando os democratas que os indecisos não votem em alguém que profere este tipo de comentários).

Como vos dizia no primeiro parágrafo, tinha a newsletter quatro parágrafos sobre esperança e respirar de alívio quando vi a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, em Paris. E, embora a única coisa que tenhamos escrito sobre o tema tenha sido o regresso de Céline Dion aos palcos — o que deixou toda a gente emocionada por causa da doença incapacitante de que sofre, o que deixa qualquer pessoa que sofra de qualquer doença incapacitante com esperança de também conseguir contrariá-la —, queria escrever sobre a mensagem que aquela cerimónia transmitiu, como foi passada da melhor maneira, como em duas ou três horas, ficamos a conhecer os músicos, de Bizet à banda de heavy metal Gojira — no cenário do antigo tribunal de Paris, com Maria Antonieta de cabeça guilhotinada —, passando por Aya Nakamura (tão atacada pela extrema-direita francesa por ter sido escolhida para esta abertura) e que cantou os seus sucessos "Djadja" e "Pookie", mixados com o clássico "For me Formidable" de Charles Aznavour, acompanhada pela banda da Guarda Republicana, naquilo que é uma verdadeira bofetada a quem a criticou.

Devo confessar que me emocionei ao ver os guardas com os seus instrumentos, a dançar e a rodear Aya. Assim como as lágrimas voltaram quando a mezzo-soprano Axelle Saint-Cirel, no alto do Grand Palais cantou o hino francês, "Marselhesa", debaixo do dilúvio, e no rio víamos erguerem-se as francesas que contribuíram para um mundo mais igual, de Olympe de Gouges (1748-1793), que com as suas ideias contribuiu para a Revolução Francesa e que acabou guilhotinada, a Simone de Beauvoir (1908-1986), sem esquecer Simone Veil (1927-2017), a nomes que eu desconhecia como Christine de Pizan (1364-1430), considerada a primeira escritora, a Paulette Nardal (1896-1985), jornalista e a primeira mulher negra inscrita na Sorbonne. Espreite quem foram as outras mulheres celebradas.

Fiquei perdida de riso com a parte dedicada aos grandes escritores franceses, com particular ênfase para Annie Ernaux (1940-), o prémio Nobel da Literatura, e passagem pelos clássicos como Molière (?-1673), Choderlos de Laclos (1741-1803) a Guy de Maupassant (1850-1893) aos contemporâneos como a própria Ernaux e Leila Slimane (1981-). Os títulos escolhidos dizem todos respeito ao amor e a cena filmada numa biblioteca era de um amor livre, talvez poliamoroso ou lembrando uma expressão também muito francesa, uma ménage à trois.

Houve ainda espaço para drag queenspessoas que menstruam e pessoas com corpos diversos. Imaginei como estariam a ver esta cerimónia os países com costumes mais conservadores. Será que, a ser emitida em directo, estava sempre a ir para intervalo? Thomas Jolly, o director criativo, pegou no lema da Revolução Francesa, "liberdade, igualdade, fraternidade", e juntou-lhe outras palavras como "sororidade" e "diversidade", dando esperança à "humanidade". Para mim, a cerimónia terminava com a cantora Juliette Armanet e o pianista Sofiane Pamart a interpretarem "Imagine", de John Lennon, no Sena, tal e qual como aconteceu, com o piano a arder na escuridão da noite, como um farol de esperança num mundo melhor.

Boa semana!