“Se não fosse o judo, estava na prisão”
Ashley McKenzie foi três vezes olímpico pela Inglaterra antes de representar a Jamaica no judo, em Paris.
Todos os desportos pretendem ser universais – é nisso que se baseia o Comité Olímpico Internacional (COI) para fazer o seu programa. Claro que há umas modalidades mais universais que outras, mas o judo tornou-se surpreendentemente universal desde que se estreou nos Jogos de Tóquio em 1960. É uma modalidade com as suas potências, mas com muitas bandeiras de todas as latitudes, até das Caraíbas. E ver a bandeira da Jamaica num torneio olímpico de judo é (quase) tão surpreendente como tê-la visto na prova de bobsleigh nos Jogos de Inverno em Calgary 1988.
A bandeira do país de Usain Bolt estava no quimono de Ashley McKenzie, que competiu em Paris 2024 no primeiro dia do judo olímpico, na categoria masculina de -60kg. Ganhou um combate, perdeu outro, não ficou para a sessão da tarde e foi embora para a casa, tal como aconteceria depois com a portuguesa Catarina Costa e muitos outros judocas. Mas este não era o primeiro dia olímpico de McKenzie. Aos 35 anos, ele estava a competir nos Jogos pela quarta vez – as três primeiras, entre 2012 e 2021, foram pelo país onde nasceu, a Grã-Bretanha, a quarta foi pelo país do seu pai, a Jamaica.
As letras que tinha nas costas eram diferentes – JAM em vez de GBR. Mas o resultado foi igual ao de todos os outros Jogos, sempre fora da luta pelas medalhas. Foi o turco Salih Yildiz quem lhe travou a progressão e, depois da derrota, deixou-se ficar no chão e não se levantou durante alguns segundos. Também lhe custou a sair do tapete e foi pelo caminho mais longo até à porta de saída do pavilhão, absorvendo aqueles que poderiam ser os seus últimos momentos nos Jogos.
Um "bad boy" jamaicano
Ashley McKenzie entrou no judo porque um rapaz lhe roubou as cartas do Pokémon. Tinha 11 anos, estava diagnosticado com défice de atenção e hiperactividade, tinha asma, borbulhas e já tinha sido operado ao coração com 18 meses de idade.
O rapaz estava desesperado para aprender como se batia em alguém, mas a mãe barrou-lhe o acesso ao boxe. O judo foi um compromisso entre os dois e o jovem Ashley rapidamente se revelou um talento (e ficou amigo do rapaz que lhe roubou as cartas), sempre com uma certa atitude “bad boy” – foi, aliás, o título de um documentário que a BBC fez com ele, a propósito dos Jogos de Londres em 2012.
O londrino revelou-se um judoca de eleição, com múltiplas medalhas em Europeus e em provas do circuito mundial. Tudo isto, enquanto desenvolvia uma actividade paralela como “estrela” de reality shows televisivos – deu para ganhar dinheiro, entrar no circuito das celebridades britânicas e financiar a sua manutenção na alta competição. E até aos 34 anos, competiu pela Grã-Bretanha. Depois, em 2023, decidiu mudar a sua nacionalidade desportiva para a Jamaica por sentir que o país do seu pai o “compreendia melhor”.
Em Paris, ele foi um de apenas quatro em 58 atletas da Jamaica que não estão no atletismo – um no judo, um nos saltos para a água, dois na natação. Chegou, venceu e perdeu por “uma polegada” com o seu adversário turco.
“Dei-lhe uma polegada, ele levou uma milha. Ele só estava a jogar pelos castigos e eu também fazia isso no meu tempo. Mas houve alturas em que o tive no chão e podia ter acabado com aquilo. Essa polegada vai ficar na minha cabeça por muito tempo”, dizia McKenzie já na zona mista, depois da tal longa caminhada.
Já longe da imagem de “bad boy”, um pai de família que naquele momento só tinha saudades da filha pequena, McKenzie voltou a reconhecer que o judo definiu-lhe a vida. “Se não fosse o judo, estava na prisão”, reforçou. Mas também acrescentou que esse papel transformador talvez tenha chegado ao fim: “Preciso de estar uns tempos fora disto, o meu corpo está dorido. Não sei se me vou retirar, preciso de falar com o meu treinador, falar com a Sandra [a mulher]. Tenho 35 anos e tenho saudades da minha filha. Estou demasiado tempo longe dela.”