Mais casos de hepatite A e C devem-se a surto e consciencialização para o rastreio

Programa Nacional para as Hepatites Virais (PNHV) 2024 que é apresentado esta quinta-feira no Porto mostra que, de 2022 para 2023, houve um aumento de 25% na hepatite A e de 19% na hepatite C.

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Médicos e enfermeiros do Hospital de Santa Maria fazem consulta, rastreio e diagnóstico da hepatite C junto de grupos de maior risco, em locais como o centro de acolhimento do Beato Ricardo Lopes
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Portugal registou, em 2023, um aumento do número de casos de hepatite, particularmente da hepatite A e C, números que podem estar relacionados "em parte" com um surto e com a consciencialização para a importância do rastreio. No que se refere à testagem, realizaram-se mais de um milhão de testes às hepatites B e C, um dado considerado positivo, mas o director do Programa Nacional para as Hepatites Virais (PNHV) defende a importância de testar ainda mais.

De acordo com o relatório do Programa Nacional para as Hepatites Virais (PNHV) 2024 que é apresentado esta quinta-feira, no Porto, de 2022 para 2023, particularmente na hepatite A verificou-se um aumento de 25% e na hepatite C um aumento de 19%.

"Este aumento poderá ser justificado, em parte, pelo surto de hepatite A e pelo potencial aumento de consciencialização para a importância do rastreio de hepatites, pelo menos uma vez na vida", lê-se no documento.

A equipa que realizou o relatório, liderada por Rui Tato Marinho, aponta que o aparente aumento do número de casos confirmados para a hepatite C (que atingiu em 2023 valores similares aos pré-pandémicos) poderá estar explicado pela retoma da actividade assistencial.

Quanto ao aumento da hepatite A, aponta o surto que terá começado no final do ano passado e que levou a Direcção-Geral da Saúde (DGS) a constituir uma Equipa de Gestão e Resposta ao alerta da Hepatite A.

Em Janeiro de 2024, através do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE), detectou-se o aumento do número de casos de hepatite A em Portugal, numa média de cinco ou seis casos por semana superior à média semanal de 0,5 casos nos quatro anos anteriores.

Salvaguardando que estes são dados provisórios, os autores do relatório lembram que a investigação epidemiológica subsequente identificou 125 casos confirmados de Hepatite A, entre 7 de Outubro de 2023 e 7 de Julho de 2024.

A maioria destes casos tinha entre os 18-44 anos de idade (80%), era do sexo masculino (85%), e da região de Lisboa e Vale do Tejo (70%).

Quanto às fontes de transmissão, a actividade sexual surge em 44% dos casos, a contaminação alimentar/água em 16% e o contacto próximo em 7%. Em 33% dos casos não foi possível identificar a via de transmissão.

Reforçando a convicção de que o aumento do número de casos estará associado ao surto, Rui Tato Marinho destacou a importância da actuação, lembrando que a DGS criou esta comissão de emergência para lidar com a Hepatite A, como fez com a covid-19 ou com a hepatite aguda grave que afectou recentemente muitas crianças.

Quase 60 mil doses de vacina

"Portugal está preparado. Surge uma epidemia amanhã e rapidamente se forma um grupo multidisciplinar para começar a actuar com modelos de actuação que podem ser comuns a outras doenças. Portugal habituou-se a lidar com o inimigo, mesmo que seja um inimigo que não se conheça totalmente", disse Rui Tato Marinho, sublinhando uma das principais recomendações do programa.

"É um dos nossos objectivos promover a vacinação da hepatite A. Não é uma doença tão grave, mas é importante. E fizeram-se quase 60.000 doses de vacina. Acaba por ser um marco em Portugal", referiu.

Enquanto a vacina para a hepatite B é administrada a todas as crianças recém-nascidas, de acordo com o esquema recomendado pelo Programa Nacional de Vacinação, a vacina contra a hepatite A não é recomendada por rotina, mas está recomendada em alguns grupos de risco ou e em contexto de pré-exposição, como viagens por exemplo.

São, ainda, elegíveis para vacinação gratuita contra a hepatite A candidatos a transplante hepático e crianças sob terapêutica com factores de coagulação derivados do plasma.

À Lusa, Rui Tato Marinho destacou ainda que nas hepatite B e C se sabe que "os casos identificados são inferiores ao real". "Mas também sabemos que muitos são crónicos, pessoas que já têm há muito tempo e só agora é que sabem", acrescentou.

Rui Tato Marinho falou ainda do aparecimento de duas hepatites mais raras, a hepatite D (Delta, que está associada à B) e a hepatite E, mais conhecida como causa de epidemias em África ou na Ásia. "Existem casos pontuais em Portugal e até em pessoas que não fazem viagens para países de risco", referiu.

A diminuição dos internamentos e dos transplantes por hepatite B e C foram outros dos dados destacados por Rui Tato Marinho.

Quanto à mortalidade em 2023, o director disse que "a morte por cirrose está mais ou menos estabilizada e pode diminuir", enquanto "a morte por cancro do fígado poderá vir a aumentar", mas este é, apontou, "um fenómeno internacional".

"Sabemos que 37% de quem faz tratamento à hepatite C - quase 2.000 em Portugal - tem o fígado já estragado. As pessoas com cirrose, mesmo que eliminemos o vírus da hepatite C, vão manter para toda a vida o risco de poder vir a ter cancro no fígado. Têm de ser vigiadas para toda a vida", alertou.

Aumento de testes

No que se refere à testagem, o relatório aponta para um aumento, mas Rui Tato Marinho quer mais.

"Somos dos países da Europa que mais testa. Isto são doenças silenciosas, doenças que as pessoas não sabem que têm e podem ter durante 20/30 anos. Toda a gente devia fazer os testes de hepatite B, hepatite C e da SIDA pelo menos uma vez na vida", disse Rui Tato Marinho.

O director do PNHV salientou a importância da testagem porque permite "identificar pessoas que não sabem que têm a doença, vacinar, curar e proteger a família e outras pessoas", uma vez que estão em causa doenças infecciosas.

Os dados de vigilância epidemiológica sobre hepatites A, B (incluindo a Delta), C e E foram obtidos a partir da plataforma de suporte ao SINAVE (Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica), sendo salvaguardado que os dados referentes a 2023 são ainda provisórios.

No documento lê-se que "os testes para o diagnóstico de VHB [vírus da hepatite B] e VHC [Vírus da hepatite C] prescritos e realizados anualmente em contexto hospitalar e nos cuidados de saúde primários têm demonstrado uma tendência globalmente crescente".

Os autores do relatório acreditam que este aumento seja "provavelmente fruto da maior atenção dirigida às hepatites virais B e C nos últimos anos, apoio às populações-chave e grupos vulneráveis, bem como, no contexto da vigilância de saúde global das pessoas".

Ao nível dos cuidados de saúde primários, em 2023, foram prescritos e realizados 289.959 testes de AgHBs (antigénio de superfície do vírus da hepatite B) e 218.566 testes de anti-VHC (anticorpo contra o vírus da hepatite C), verificando-se um aumento de 4% e 8%, respectivamente, quando comparados com 2022.

No entanto, salvaguardam os autores, "estes resultados podem estar subestimados em termos de intervenção diagnóstica pois, em muitas unidades de saúde, há possibilidade de realização de testes rápido para VHC [vírus da hepatite C], não existindo, à data, um procedimento padronizado e validado para a sua monitorização a nível nacional".

Um dos aspectos em destaque no relatório é a importância da intervenção no terreno de organizações não-governamentais (ONG), que ajudam a promover modos de prevenção e contribuem indirectamente, para a pacificação social. Esta actividade é um dos aspectos que faz com que, para o director do PNHV, Portugal seja “um dos melhores do mundo”, no que concerne às hepatites virais.

"Têm um papel muito importante porque estão mesmo perto das pessoas. Nem toda a gente vai aos hospitais ou aos centros de saúde. E há um contributo indirecto porque contribui para a pacificação social (...). Todos colaboram para um bem comum que é ajudar quem está doente, não ser punitivo. Não dizer "tiveste a vida assim e assado e [isso] tem consequências". Trata-se de recuperar as pessoas", defendeu.